terça-feira, 13 de novembro de 2007

Crônicas do livro "Tremores da terra"

HIROSHIMA, MEU XODÓ

Advinhe quem forneceu urânio para as bombas que mataram Hiroshima e Nagasaki.
Este mês completou 42 anos do massacre: três dias após o Cinco de Agosto, data do aniversário da Paraíba, de sua Capital e da nossa Padroeira, a Senhora das Neves. A novena acabou na quarta-feira, mas a festa profana foi até o domingo. No sábado, passou-se o aniversário de Nagasaki e Hiroshima.
Quem se lembrou de rezar uma ave-maria para as almas penadas e depenadas pelas bombas do Tio Sam?
Foram 250 mil (duzentas e cinqüenta mil) pessoas desintegradas em poucos segundos. Em Nagasaki, as colinas da cidade ainda quebrantaram a quebrada da bomba. Mesmo assim, 50 mil (cinqüenta mil) pessoas desencarnaram, literalmente, antes que seus olhos atônitos piscassem diante do caos.
Mas, em Hiroshima, na planície de Hiroshima, na praia de Hiroshima, a bomba estalou, livre e solta, o clarão que ofuscou até o Sol Nascente.
A primeira notícia foi o silêncio da Rádio Hiroshima. Ela saiu do ar quando o capitão Tibbets liberou a ordem para a desova da "Little Boy" do ventre de sua "Enola Gay".
Na Segunda Guerra,
Tio Sam levava
shelita do Nordeste.
A bomba cristã era batizada com um nome gaiato, assim como o avião de Tibbets, a superfortaleza-voadora B-29. Na manhã clara do oito de agosto de 1945, as duas Boeings voavam tranqüilas no céu japonês; era um céu azul-zen, limpo. A força aérea do Japão já havia sido praticamente destruída, e nenhum caça foi receber as Boeings. Nem um zero. Sequer o foguetório antiaéreo saudou o vôo soberbo dos quadrimotores. De repente, o caos.Banzai, sinos de Nagasaki! Benzei, campanários do Mundo!
Na manhã de oito de agosto de 1945, a humanidade entrou na Era Atômica com o selo do sangue de centenas de milhares de vítimas. Fez 42 anos neste agosto corrente, quando a Paraíba comemora seus 402 anos de fundação. A festa da padroeira demorou-se até um dia após o aniversário de Hiroshima e Nagasaki, mas ninguém se lembrou daquela data triste.
Advinhe quem forneceu, sem saber, o urânio para as bombas que mataram Nagasaki e Hiroshima.
Deu no jornal que a Paraíba possui uma jazida de doze mil toneladas de urânio, no município de São José de Espinharas, a duas léguas da cidade de Patos. Possui mais. Na cidade de Pocinhos, a igreja Matriz guarda, debaixo da nave, uma jazida de urânio. A província da qual faz parte São José de Espinharas vai longe Seridó adentro.
Durante a Segunda Guerra Mundial, mesmo antes do Brasil entrar na dança, Tio Sam já vinha buscar sheelita no Proeminente Nordestino. O Rio Grande do Norte fornecia em abundância; mas, o Tio levou também a shelita de Santa Luzia do Seridó paraibano. Mais tarde se descobriu que a shelita de Santa Luzia não era só shelita. O gringo, calado, levou urânio.
Em agosto do próximo ano, meu bom sacristão de Santa Luzia, no dia oito, coloque, entre as intenções da Missa, as almas vaqueiras de Nagasaki e Hiroshima. São duas paróquias longe daqui, onde mataram o povo de manhãzinha. O sucesso se deu com a pólvora de Santa Luzia.
Naquele tempo, só o gringo, o tedesco e pouca gente mais sabia o que era urânio. Mais tarde, o governo brasileiro considerou o urânio estratégico. Todo bem precioso é estratégico. O ouro, porque mais caro, é mais estratégico que o petróleo, até mais que o próprio urânio.
Com ouro se compra urânio, petróleo, governos e legisladores. Nesse sentido, todos os metais nobres, todos os minerais do Brasil devem ser considerados, tratados e explorados como estratégicos. Sejam os serrotes de ouro de Princesa, a serra de urânio de São José de Espinharas, ou a sheelita matadeira e mortífera de Santa Luzia do Seridó.

18-08-1987

ESPERANÇA

Seu último leirão foi aberto por seus próprios braços e semeado com seu próprio corpo. Assim caroço, José Soares carregava o germe imortal da esperança. O ancião e decano das 34 famílias da fazenda Bela Vista morreu de estranha causa, difícil de ser qualificada pelos médicos legistas. O trator dos novos proprietários da fazenda passou por cima da casa de José Soares: eram duas águas inclinadas sobre as paredes de taipa, quase continuidade do chão. Mais acidente que mesmo casa, tão natural na superfície da terra.
Tantos anos sob a cumeeira singela (seu único abrigo). Tantos anos abrindo leirões de onde brotavam a vida. E José Soares viu sua casa e sua roça trituradas sob as esteiras do trator comprado com dinheiro emprestado pelo povo, com juros subsidiados pelo povo... para destruir a roça e a casa do povo.
O coração de José Soares não resistiu à esteira da injustiça. O trator, que deveria multiplicar o trabalho dos homens como ele, braçais do campo, começava por liberar mão-de-obra. E, máquina de guerra em vez de instrumento de paz, arremetia contra os frutos do trabalho dos homens, demolindo o teto de velhos e crianças.
De todos os moradores da fazenda Bela Vista, José Soares carregava, provavelmente, a maior safra de traumas. E sucumbiu ante a nova praga que devastava os campos e abatia a casa de sua gente. Por coincidência, a fazenda Bela Vista está situada no município chamado "Esperança". O nome foi o padre Ibiapina (antigo missionário do Nordeste) que traduziu da fala cariri. Ou verteu para a fala cariri, pois os povos primitivos têm dificuldade de criar conceitos abstratos. Assim, babani-buié, ou banabuié, vem significar "esperar grande". Se o índio criou, ou se aprendeu de Ibiapina, nem o antropólogo Elias Borges saberá. O fato é que a expressão deu nome ao lugar, primeiramente como "Banabuié". Depois, o topônimo mudou para "Esperança", no português de Ibiapina.
O fato de o recente despejo estar ocorrendo em um lugar que leva o nome de "Esperança", é cruel coincidência. Mas em qualquer Paraíba, em qualquer Pernambuco (ou em todo João Cabral), o fato é corriqueiro. Os tratores estão sendo usados mais para desmanchar roçados que para plantá-los. O que interessa, ao novo latifúndio, é terra para soltar boi. E, onde pasta o boi, o homem é um intruso. Mesmo que tenha chegado primeiro de que o boi ao local. Agora, o boi é do dono da terra, e tem prioridade sobre os antigos inquilinos. Isso é ainda mais lamentável quando se sabe que a agricultura é perfeitamente conciliável com a pecuária, o capim podendo ser plantado em consórcio com diversas lavouras.
Os tratores, um dia esperados como esperança para o campo, aparecem como a mais medonha das pragas, conduzidos pelo irmão-lobo. Pois o patrão –o opressor, o lobo do homem — é também irmão desse homem. O mesmo sangue singra nos sonhos da senzala e da casa-grande. Os sonhos devem ser diferentes, mas navegam o mesmo rio, levados pelo sono que acalanta injustos e injustiçados, dádiva de Deus aos seus santos e pecadores.
As famílias tangidas da Bela Vista, onde irão morar, trabalhar, viver e sonhar? Onde repousarão suas cabeças –como as raposas e as aves do céu–, sem covas e sem ninhos?
O decano da comunidade, José Soares, já recebeu o derradeiro leito. Outros deverão cavar as trincheiras da esperança.

13-02-1987


O MENINO NA PRAÇA

Muitas coisas ficarão para sempre na memória. O túnel da barraca, a lona preta, mais preta que as telhas enegrecidas pela fumaça do fogão da casa antiga que ficou no sítio, abandonada às pressas; os caibros tortos da barraca cheia de gente que era vizinha e que, de repente, passou a morar junto, unida pelo frio, pelo medo, pela coragem.
A umidade da esponja dos colchões, saturados pelo chão molhado, não secará nunca, mesmo depois que as últimas lágrimas tenham sido enxugadas e até consoladas. Nunca a chuva será tão forte, tão constante, tão fria, tão ruidosa como na lona escura da barraca cheia de gente, medo, esperança.
Tudo ficará molhado para sempre na lembrança. A coberta, a roupa, a tosse, o soluço de tantos acalantos. Sempre haverá um menino tossindo numa noite muito fria, chuvosa, sob a lona preta da barraca longe de casa.
Uma praça estranha, com gente passando e parando. Uns homens de ferro, sempre na mesma posição, indiferentes à chuva e à polícia. Uns homens de paletó de ferro, sem barraca, parecendo donos da praça. Aqueles homens de ferro, que não corriam da chuva nem do soldado, ficarão para sempre na memória.
A zabumba, o ganzá, a ciranda, os meninos dançando com as pessoas grandes, o povo cantando cantigas que ficarão para sempre, inesquecíveis. A viola, a moça cantadora, a lua que a chuva deixava. As palmeiras eram muito grandes, maiores que o soldado e os homens de ferro. As palmeiras chegavam perto da lua com suas folhas tremendo nas alturas. As palmeiras, também tremendo de medo, ficarão plantadas para sempre na noite longe de casa.
Um dia, tiveram uma casa numa roça verde como aquela praça.
Veio o novo dono da terra, de tudo, com a polícia e o trator, e todos tiveram que sair depressa. Na noite que choveu mais forte que o medo, tiveram que sair depressa para a casa grande junto da praça. Veio o caminhão, o soldado dando no pai com o cacete grande, de matar bode. A mãe deu um passamento. Ninguém para ouvir seu choro, nem os homens de ferro que pastoravam a chuva e o medo.
O corre-corre, as panelas quebradas, a mão do soldado, a mudança para a casa que chamavam "quartel". O pai obrigado a
deitar no chão, apanhando de novo, o cacete de matar bode, o soldado. A mãe indo verter, o soldado junto. Como a cantiga e a reza, o medo ficou decorado.
Depois, outra vez na praça. Os homens de ferro ainda estavam lá, ouvindo o comício. O pai, os vizinhos do sítio longe e antigo levantaram outras barracas de lona preta, iguais às que o soldado rasgou. Acenderam outro fogo e outra lua mais alta para o soldado não levar, como levou as latas de comida. Tomou o leite depressa, antes que o soldado quebrasse a panela. Leite da cor do medo, coalhado para sempre.
As pessoas grandes conversavam baixinho, mas dava para ouvir. Umas diziam que voltariam para a casa do sítio, o juiz ia deixar. Outras, falando ainda mais baixo, diziam que o soldado ia voltar, quando a chuva passasse, de noite. Depois, as pessoas grandes rezavam ao Pai do Céu. Diziam que o soldado matou também o Filho do Pai do Céu, mas que ele envivecera de novo, como a lua. Sabia da história, crucificada na memória.
Havia uma cruz na praça. Tinha medo que pregassem alguém nela, de noite, na chuva, para sempre.

18-07-1987



FREIRE, O FERMENTO

Um dia após o aniversário da Independência do Brasil, o ministro da Reforma Agrária e seus assessores mais próximos morreram em circunstâncias trágicas e misteriosas. O campeão da reforma agrária morreu da mesma forma que o sueco Dag Hammarskjöld, secretário-geral da ONU.
Dag dirigia-se à terrível África do Sul para ver o problema do apartheid. Cristão e poeta, Dag não se conformava com a situação subumana em que vivia, e ainda vive, a maioria negra (e nativa) da África do Sul. Mas o avião de carreira em que voava explodiu antes que o profeta da comunhão das raças chegasse a seu destino. Até hoje ainda não se esclareceram as circunstâncias da morte de Dag e de todos os passageiros e tripulantes do avião.
Do grande poeta sueco ficou o pensamento que bem definiu sua forma de sentir e viver: "se queres aventura, terás aventura –na medida da tua coragem–; se queres sacrifício, serás sacrificado –na medida da pureza do teu coração."
Assim como a tragédia de Hammarskjöld, o sacrifício de Marcos Freire talvez demore a ser explicado. Mas, um dia, a verdade se revelará à luz da História. O Brasil já vive novos tempos, e crimes que fizeram vítimas nas pessoas de seus mártires, na luta pela real independência do País, já se revelam aos conhecimento da opinião pública.
O acidente em que morreu o ministro da Reforma Agrária será mais uma oportunidade de o presidente Sarney testar os dispositivos de segurança da democracia brasileira. A grande ocasião foi a morte do presidente eleito Tancredo Neves, falecido em vésperas de sua posse — como o vice-governador da Paraíba, Raymundo Asfora, suicidado nove dias antes de assumir o cargo.
Quando Tancredo morreu, os dispositivos de segurança da recente e ainda precária democracia brasileira não tinham sido inaugurados. A morte do presidente eleito não foi suficiente para cortar o cordão umbilical que liga os serviços de inteligência à ditadura militar ainda insepulta. O velho mineiro pode até ter sido vítima desses serviços, ditos de inteligência, que mataram tantos brasileiros durante o vintênio de exceção.
As explicações sobre o desaparecimento de Marcos Freire e de toda sua equipe não podem ficar em suspenso — como os fatos que levaram à morte o general Castello Branco, quando sobrevoava o Ceará. O jatinho da FAB em que Freire voava, exclusivo do transporte de autoridades, pilotado por um coronel, assistido por um serviço de manutenção preventiva, não podia explodir facilmente –como um teco-teco paisano. As bruxas estavam soltas em plena comemoração da Semana da Pátria.
A quem interessava a morte de Marcos Freire?
—Aos incomodados e ameaçados pela perspectiva de uma reforma agrária, mesmo que tardia e limitada, quando o Brasil elabora uma nova constituição. A área conflitada, que Marcos Freire queria sobrevoar, era uma das tantas que despertavam a atenção do ministro, voltada para as áreas improdutivas do País.
Marcos é morto. Mas o fermento do seu coração há de levedar a terra que queria do povo.

11-10-1987


SETE PALMOS

Quem ler o Decreto-Lei nº 2363 irá entender porque o avião em que voava Marcos Freire caiu. Neste país de 8 milhões e 500 mil km², simplesmente não havia terra para o ministro da Reforma Agrária pousar. Depois que Marcos Freire foi morto, mataram o Incra. Eliminaram, por decreto, a possibilidade de reforma agrária no Brasil.
O Nordeste, por exemplo, ficou praticamnte imune à reforma agrária. Só poderão ser desapropriadas terras inexploradas, com área superior a 500 hectares. Só se for na plataforma oceânica, onde os sem-terra poderão cultivar sargaços –com mercado garantido em Portugal e no Japão.
Depois que Freire
foi morto,
mataram o Incra.
Os sem-terra terão de fazer como os jegues no Rio Grande do Norte. Tangidos do Seridó, os jegues devolutos foram dar no sertão à beira-mar do Mossoró. Lá, eles pastam o sargaço na vazante de Areia Branca e Tibau. Os sem-terra terão de fazer como as baleias e os golfinhos fizeram há milhões de anos. Abandonar o chão inóspito e galgar as profundas do mar. Os sem-terra terão de chorar seu lamento, como os magros onagros no galope à beira-mar de Tibau. Cantar o baião do escravo Ignácio:

Há dez coisas neste mundo
que todo mundo procura:
é dinheiro, é bondade,
água fria e formosura;
cavalo bom e mulher,
requeijão e rapadura,
morar sem ser agregado,
comer carne com gordura.


Enquanto a tecnologia das fazendas submarinas não vem, os sem-terra terão de fazer guelras dos bofes e ganhar os grotões do mar-oceano. Eles estarão, por um tempo, a salvo. Até que um dia sejam grilados, náufragos da terra e do mar.
Um dia, os peixes ganharam asas e aprenderam a cantar. Alguns chamam a Seca, como acauã; outros cantam a morte, no silêncio de rapina. Os sem-terra cantam a gemedeira, ai-ai, ui-ui, subcutânea à viola. Quando os sem-terras voarem para a Lua, ela estará minguante. Isto é, se não cortarem suas asas, como fizeram ao ministro da Reforma Agrária, ai-ai. Quando os sem-terra voarem para a Lua, lá encontrarão o dragão do latifúndio, ui-ui, e São Jorge recolhido em prisão domiciliar, no céu.
Não há lugar para os sem-lugares. A lei capenga fez minguar a Lua já encoberta pelo chapéu do capanga. Eles, os sem-lugar, foram banidos da vazante, foram banidos pelo capanga e a lei. Não há espaço para os sem-passos. Para eles, o sem-eiras, tem que haver uma solução final, uma cova comum, pois não há onde tanta gente expirar, os sem-ar.
Não surpreenderá ninguém um decreto que restrinja os sem-lugar a seu canto. O espírito da lei rezará esse cantochão, amém para os sem-além. Nos termos da lei, será criado um quinto ponto cardeal para os sem-norte, o ministério cultivará uma flor-dos-ventos para os sem-rosa. Não há vaga para eles nos canteiros de trabalho
De acordo com o milhar 2363, o jogo acabou para os sem-sorte. Não há lugar para os sem-Marcos.

5-12-1987

MORRER PELO BRASIL

O Brasil é mais perigoso na selva: os índios continuam a ser exterminados pelo invasor europeu. Na semana que findou foi a vez dos ianomamis. Uma aldeia inteira massacrada, a começar pelas crianças, estripadas e decapitadas à vista dos pais prisioneiros. Depois mataram os adultos, homens e mulheres, a tiros, para em seguida decapitá-los. Total da chacina: meia centena de pessoas inocentes, inofensivas, legítimas proprietárias do espaço que não tomaram de ninguém — pois o índio, quando chegou ao continente americano, encontrou a terra inabitada pela espécie humana.
O Brasil é mais perigoso nas cidades: os meninos de rua continuam a ser exterminados pelos adultos. No mês que findou foi a vez dos meninos da Candelária, no Rio de Janeiro. Eles já vinham sofrendo uma violência: o abandono ao próprio azar. Habitavam a terra de ninguém, calçada pública dos passantes que somos. Os meninos abandonados ao sono foram massacrados enquanto dormiam. A polícia acordou-os para o fuzilamento no meio da noite. Como aconteceu aos meninos ianomamis, o que mais importa não é o total da chacina, mas o total da dor.
O Brasil é mais perigoso nos campos: trabalhadores rurais são assassinados, milhentos, nas safras da morte, nos quatro pontos cardeais do latifúndio. São abatidos, ainda, sindicalistas, advogados e lideranças políticas e religiosas que se aliam na defesa dos camponeses. Tempo desses, no Brasil Central, a capangagem do latifúndio juntou e cercou uma centena de camponeses — homens, mulheres e crianças– durante dias e noites, matando-os de fome e sede.
O Brasil é mais perigoso nos rios: 80 garimpeiros (inclusive suas famílias) foram fuzilados numa ponte sobre o rio Tapajós, no Pará, pela polícia. Eles tinham obstruído a ponte em protesto contra o despejo de seu garimpo. O governo precisava desobstruir a ponte para dar espaço e fluxo ao grande capital. Os garimpeiros e suas famílias foram fuzilados, e seus cadáveres foram ocultados na mata. A imprensa nacional denunciou o fato. Mas, como nos crimes mais medonhos do Brasil, nada foi apurado.
O Brasil é mais perigoso no mar. A barca virou com uma centena de pessoas que estavam comemorando a passagem do ano, na baía da Guanabara. Quase todas morreram. O dono de outra embarcação negou-se a prestar socorro. Os passageiros eram ricos, gente da classe dominante. Minutos antes da tragédia, a barca superlotada havia sido abordada pela fiscalização da Marinha. Conversa vai, a barca foi em frente e ao fundo. O fato repercutiu internacionalmente, mas os responsáveis estão soltos, a barca foi resgatada ao mar e já navega outra vez.
Fatos similares já aconteceram antes, na mesma baía da Guanabara, onde uma barca "cantareira " afundou e afogou mais de cem passageiros; idem no rio Amazonas, perto de Belém do Pará. E na construção da ponte Rio-Niterói? Só em um acidente (censurado pela ditadura), 40 (quarenta) operários foram sepultados para sempre no cimento das fundações — como os rebeldes que se recusavam ao trabalho na muralha da China.
O Brasil é mais perigoso nos lagos. Durante as comemorações da Semana do Exército, na Paraíba, um barco virou na lagoa do parque Solon de Lucena, matando 40 (quarenta) civis — a maioria crianças– mais alguns militares. Aqueles barcos infláveis são muito perigosos, pois não têm lastro nem quilha, o que os deixa sem estabilidade. Os passageiros têm de ter disciplina para se manter nos seus lugares, embarcando e desembarcando ordenadamente; se não, a canoa vira. Aquele barcos são feitos para uso de soldados na travessia de rios e desembarque de praias. Mas o Exército usou a barca para fazer propaganda à custa de crianças. Resultado: morte.
O Brasil é mais perigoso no cárcere. A Polícia Militar de São Paulo invadiu o presídio de Carandiru e matou 111 (cento e onze) presos, metralhando-os nas celas. Como requinte, retardaram a entrada do socorro médico, assim como a saída dos feridos, para que não houvesse sobreviventes.
Quando e onde será o próximo massacre?

22-08-1993