sábado, 17 de novembro de 2007

Música mestiça

O mundo lusófono é formado pela maioria das populações de Portugal, Açores, Cabo Verde, Angola, Moçambique, Timor-Leste, Goa, Macau, Malaca, Brasil, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e outras praias de além-mar. Perfaz cerca de 230 milhões de falantes, o que eleva o Português à condição de quinta língua mais falada no mundo e terceira no Ocidente. Mas se trata de um grupo ainda pobre, sem a força de uma economia poderosa que venha a conferir prestígio a seus componentes. Por outro lado, a Língua Portuguesa ainda não é veículo de grandes obras científicas e filosóficas em número significativo, e para ela ainda faltam ser traduzidos textos importantes do acervo universal. Em que pese já possuir uma respeitável literatura, essa se ressente da modéstia econômica, política e bibliográfica da Língua Portuguesa e dos países por ela representados.

O sociólogo brasileiro e nordestino Gilberto Freyre nomeou esse universo como “luso-tropical”. Em sua obra voltou-se para “o estudo das relações antropossociológicas entre europeus e não-europeus nas áreas tropicais”. Freyre diferenciou Portugal dos outros países colonizadores, pois, segundo ele, o colonizador português conseguiu mestiçar seu sangue e sua cultura com os povos submetidos dos trópicos. Essa mestiçagem foi conseguida à força de violência; porém, deu resultados mais aceitáveis que os apartheids. Lamentavelmente, a tese de Freyre serviu de embasamento ideológico para a ditadura salazarista e a demora de Portugal em prosseguir com sua política colonial. A saída tardia (e, assim, apressada) de Portugal das suas colônias não permitiu a formação de uma comunidade política luso-tropical, nos moldes da Comunidade Britânica, de que hoje Moçambique faz parte — testemunho de que as nações modernas sentem necessidade de associação.

O fenômeno da mestiçagem étnico-cultural vai mais além de que “as relações entre europeus e não europeus nas áreas tropicais”, pois abrange, também, as relações intertropicais, no período pré e pós-colonial. É o caso das relações imemoriais nos espaços mais expressivos da presença portuguesa na África, digo entre Angola e Moçambique, praticadas pelos primeiros descendentes do Australopitecos, pai da Humanidade. Essas relações pré-coloniais foram facilitadas pela calha cultural comum do sistema fluvial Congo/Zambeze, rios nascidos na mesma fonte (Meseta do Zambeze) e que defluem em sentidos opostos para desaguar em oceanos distintos, o Atlântico e o Índico, formando, no meu dizer, um só rio transoceânico. E os rios foram as primeiras estradas do homem que, ainda quando não sabia navegar, seguiu suas margens à pé.

Como relação colonial é exemplo o êxodo africano para o Brasil, principalmente dos pólos emissores Angola e Moçambique. No destino brasileiro se gerou um povo mestiço dos três estoques raciais (os estoques amarelo, negro e branco), formando, conseqüentemente, uma cultura universalmente mestiça. Algo dessa cultura mestiçada refluiu para a Metrópole, como o fado, nascido em território brasileiro de pai angolano (lundu) e mãe portuguesa (modinha), no tempo do reino unido Brasil-Portugal-Algarve. Levado pelos retornados à Metrópole, lá cresceu e transformou-se por força das influências locais e heranças outras — a exemplo da moura, por sua vez já africana.

A formação cultural brasileira tem esse caráter sincrético, pois o Brasil é fundamentalmente mestiço, à exceção de áreas restritas que recepcionaram novos colonos europeus. Mesmo assim, essas áreas deram vez ao nascimento de nomes notáveis da música mestiça brasileira como Lupiscínio Rodrigues e Caco Velho (Matheus Nunes), esses no estado do Rio Grande do Sul, na fronteira meridional. Assim como o Brasil, todo o mundo lusófono tropical tem caráter mestiço e sincrético.

No universo lusófono têm surgido iniciativas isoladas e espontâneas de mestiçagem musical. A toada Mãe-preta/Barco negro, de Caco Velho/Piratini/David Jesus Mourão-Ferreira é exemplo — em que pese ter sido provocada pela censura salazarista que tirou do rádio o poema original brasileiro (Mãe-preta), de forte cunho social e político, para dar lugar à lírica amorosa de Mourão-Ferreira (Barco negro). A partir daí, Mãe-preta/Barco negro pode ser visto como um divisor de águas ideológico na música mestiça luso-tropical: a vertente de Mãe-preta flui para a esquerda, a de Barco negro corre para a direita. Mãe-preta teve grandes momentos no arranjo da interpretação de Ana Faria (cantora e percussionista), onde se destaca o som de uma chibata (que está presente na letra), assim como no arranjo da interpretação de Lissandra Lima, onde também se pode notar, na percussão, um efeito disfarçado de chibata, um tanto fora de cena (em off). Algo semelhante foi utilizado pelo percussionista Dalú na primeira gravação que Mariza fez de Barco negro (CD Fado em mim), onde se ouve, nítido, o som de uma chibata; mas esse artifício não pode ser associado à lírica de Mourão-Ferreira, pois sua letra não faz nenhuma referência aos procedimentos e sofrimentos da escravidão no Brasil. Destaque semelhante na percussão se notará na primeira gravação de Transparente (Abreu Lima/Rui Veloso), quando o tambor (leia-se elu) de Marcelo Costa se manifesta ao serem pronunciadas as palavras "minha avó negra".

O gaúcho e negro Caco Velho ainda compôs, para Amália Rodrigues, um sincretismo de bailinho (português) e de samba, como é a peça Conselho, e outras experiências nos anos cinqüentas. Luís Gonzaga, ainda nos anos cinqüentas, criou o fado-baião Ai, ai Portugal; Dorival Caymmi também fez sua parte, e compositores recentes, como Chico Buarque e Caetano Veloso, fizeram fado sincrético. Meu amigo e conterrâneo Sivuca experimentou o ritmo sul-africano upakanga (acrescente-se a isso o fato de ter sido maestro de Miriam Makeba e do Duo Ouro Negro). Uma dúzia de compositores estão reunidos no LP Fados Brasileiros (editora Marcus Pereira), na voz de Paula Ribas. E Gal Costa tem um grande momento na tropicalização de Milho verde, tradicional português, com arranjo de Gilberto Gil (o próprio milho é uma contribuição das culturas americanas à economia européia). A mestiçagem musical também se manifesta em Cabo Verde, com Sara Tavares, Cesária Évora e Tito Paris, e em Angola, com Pedro Flores e Felipe Mukenga.

Portugal se faz presente de forma notável na música nova lusófona, onde se destacam o clima tropical dos arranjos do brasileiro Jacques Morelenbaum no CD Transparente (Mariza, 2005) — principalmente na faixa título de Paulo Abreu Lima/Rui Veloso e nas peças Fado português de nós (Paulo de Carvalho), Fado tordo (Fernando Tordo) e Toada do desengano (Vasco Graça Moura/Franklin Godinho). Acrescente-se a isso o fato do CD Transparente ter sido gravado com instrumentistas brasileiros, no Rio de Janeiro, a antiga capital do Reino Unido Brasil-Portugal-Algarve.

Mais outros juntaram seu engenho e arte à expressão dos povos luso-tropicais, que, por ignorância ou injusto esquecimento, deixo de citá-los aqui. E nem tudo é afro na mestiçagem luso-tropical. Não se pode esquecer as Índias, quer Ocidentais, quer Orientais, e as ilhas, e as Ásias e Oceanias. Há mestiçagens inclusive ainda por fazer, como a inclusão cultural dos povos amarelos arredios que sobreviveram ao contágio europeu e habitam os desertos amazônicos do Brasil.

Entendo que o fenômeno da mestiçagem musical de expressão portuguesa (manifestada, no passado e no presente, de forma espontânea), vem atender ao reclamo da identidade étnico-cultural do mundo de fala lusitana, identidade necessária quer internamente, entre seus povos, quer externamente, diante das nações — onde os povos luso-tropicais, de culturas tão ricas, não têm o destaque merecido, ainda reduzido pelas limitações políticas referidas no início desse texto.

O sucesso e o resultado como norte cultural obtidos no CD Transparente, a que se seguiu o espetáculo itinerante de Concerto em Lisboa, devem seu crédito aos esforços somados da cantora Mariza, do maestro Jacques Morelenbaum e de uma plêiade de compositores e de instrumentistas. Tanto o CD, gravado em estúdio, como o DVD do espetáculo vêm atender à necessidade acima referida de identidade, de expressão e de comunicação entre os povos luso-tropicais e desses povos para com o mundo. À Mariza cabe o mérito da iniciativa de convocar os compositores e o maestro Jacques Morelenbaum para essa navegança da música lusófona; ao maestro, além dos arranjos e de seu desempenho pessoal no violoncelo, credite-se também a escolha dos músicos brasileiros que fizeram a banda na gravação de estúdio, pois no Concerto tocaram os músicos permanentes de Mariza e a Orquestra Sinfonieta de Lisboa.

Assim, maestro e músicos, quase todos brasileiros, somados à cantora de nação Moçambique, ela já mestiça luso-afro-hindu, mais os compositores portugueses e a parceria luso-brasileira de Barco negro (Caco-Velho/Piratini/D. J. Mourão-Ferreira), fizeram a mestiçagem musical do CD Transparente, onde se ouve fados com arranjos para chorão e clarineta, como na Toada do desengano. Até agora, Transparente foi o momento em que a mestiçagem musical lusófona alcançou sua expressão maior. É de se esperar que esse tom venha a ter continuidade na música portuguesa moderna, em futuras gravações da própria Mariza e de outros expoentes de aquém e de além-mar. Sabe-se que o próximo disco da cantora será produzido pelo maestro espanhol Javier Limón, de reconhecida competência. Mas a mestiçagem é geneticamente irreversível.

A música tradicional portuguesa também deve e pode ser apresentada juntamente com a música mestiça, como não deixou de ser feita. A música tradicional é o banco genético de onde se extraem os elementos relativamente puros para a formação da mestiçagem musical. Assim, o trabalho de outros artistas, preocupados com o purismo, não deve ser desprezado, pois é do encontro dos puros que nasce o mestiço. Eles, os puristas, querendo ou não, vêm a ser a fonte da mestiçagem. Alguns, mesmo quando puros, são ecléticos quando reúnem, no seu trabalho, peças de várias culturas. Mas é preciso distinguir ecletismo de mestiçagem. Artistas portugueses há que estão fazendo um trabalho eclético, cantando músicas de origens diversas, inclusive brasileiras; esse é um trabalho necessário e nem menos nem mais importante que o da mestiçagem musical, mas um precioso trabalho que ainda não pode ser considerado como um resultado mestiço, pois suas peças, antípodas que sejam, não têm o hibridismo cultural que vem caracterizar a música mestiçada.

Na linha da lusofonia mestiça ainda está a se esperar uma gravação, numa só peça, da versão original de Mãe-preta (Caco Velho/Piratini), e, em continuidade, da segunda versão, que é Barco negro (Caco Velho/Piratini/David Jesus Mourão-Ferreira). Até hoje, as duas peças têm sido executadas apenas numa versão ou noutra, porém nunca foram reunidas numa só faixa. As toadas Mãe-preta/Barco negro são um exemplo sui generis da música mestiça luso-tropical, e estão à espera de uma voz que as interprete como uma só canção.
17-11-2007

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Os filhos de Franco

— Por que não se cala? — perguntou a Europa a América.
Há meio milênio a Europa tenta calar a América. Nesse ínterim, exterminou três grandes civilizações — Asteca, Maia, Inca. Queimou todos os seus escritos, degolou os seus sábios, exterminou milhares de povos.
A ordem do rei da Espanha, Juan Carlos I, ao presidente da Venezuela, Hugo Chávez, é um procedimento antigo. O rei não disse nada de novo ao presidente. Apenas repetiu a postura arrogante do invasor, exterminador, escravizador e colonizador europeu diante dos habitantes do continente amarelo que teimavam sobreviver.
O continente que os europeus chamavam de novo, e que batizaram de “América” na pia dos degolados, era habitado de norte a sul por milhares de povos do estoque racial amarelo, desde há muitos milhares de anos. Mas a Europa disse a si mesma que “descobriu”, ou que “achou” um continente à deriva no mar e no tempo.
Sob as bênçãos do papa e da cruz, os povos do continente amarelo foram exterminados para ceder seu espaço à Europa expansionista. Os sobreviventes foram escravizados, suas mulheres apresadas para fazerem mestiços. E as línguas — milhares de línguas — receberam a ordem de calar-se, extintas e reduzidas ao silêncio.
O incidente em comento aconteceu na recente XVII Cúpula Ibero-Americana, realizada semana passada em Santigo do Chile, entre 8 e 10 deste novembro de 2007. O encontro reuniu 22 nações, representadas por seus enviados. A Espanha compareceu com força total: o ministro de Assuntos Exteriores, Miguel Ángel Moratinos, o presidente do governo, José Luiz Rodrigues Zapatero, e o rei Juan Carlos de Borbón Y Borbón.
O presidente do governo espanhol não gostou que o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, qualificasse o ex-presidente da Espanha, José Maria Aznar, de “fascista”. Ora, o mundo todo sabe que o atual reino da Espanha foi uma recriação do caudilhíssimo Franco, o fascista que, apoiado por Hitler e Mussolini, logrou extinguir a república espanhola e impor ao povo espanhol uma ditadura de meio século, a que se seguiu o atual “reino”.
Ora, é publico e notório que o caudilhíssimo Franco chamou a si a guarda do menino Juan Carlos e criou o futuro rei, educando-o ao seu estilo. O príncipe Juan Carlos formou-se nas três academias militares de Espanha — da marinha, da força aérea e do exército. No juízo do caudilhíssimo, estava, assim, apto a governar as espanhas. E foi com essa educação que o bi-Borbón brandiu a mão a voz para o presidente da Venezuela, sublinhando o gesto do presidente espanhol que viera em defesa do ex-presidente Aznar, rotulado de fascista por Chávez. — o presidente eleito pelo povo venezuelano que sobreviveu à invasão, ao extermínio, à colonização e à escravização espanhola.
O presidente Zapatero exigiu mais respeito da parte do presidente Chávez, lembrando-lhe que Aznar fora eleito pelo povo espanhol. Mas o rei nem deixou o presidente Chávez responder à colocação do presidente Zapatero, ordenando: “Por que não se cala?”
Os embaixadores espanhóis extrapolaram as regras de uma assembléia, quando falaram em dueto, nas vozes de seu presidente e de seu rei. Foi como se o rei não considerasse bastante a delegação de seu presidente. Quer dizer: a Espanha falou com as vozes de dois chefes de estado, simultânea e orquestradamente. Fica a pergunta: quem governa a Espanha, quem a representa, o presidente do governo ou o rei de Franco?
Mas a voz do povo americano não será silenciada pelo vil garrote espanhol, fascista e franquista.

13.11.2007

Crônicas do livro "Tremores da terra"

HIROSHIMA, MEU XODÓ

Advinhe quem forneceu urânio para as bombas que mataram Hiroshima e Nagasaki.
Este mês completou 42 anos do massacre: três dias após o Cinco de Agosto, data do aniversário da Paraíba, de sua Capital e da nossa Padroeira, a Senhora das Neves. A novena acabou na quarta-feira, mas a festa profana foi até o domingo. No sábado, passou-se o aniversário de Nagasaki e Hiroshima.
Quem se lembrou de rezar uma ave-maria para as almas penadas e depenadas pelas bombas do Tio Sam?
Foram 250 mil (duzentas e cinqüenta mil) pessoas desintegradas em poucos segundos. Em Nagasaki, as colinas da cidade ainda quebrantaram a quebrada da bomba. Mesmo assim, 50 mil (cinqüenta mil) pessoas desencarnaram, literalmente, antes que seus olhos atônitos piscassem diante do caos.
Mas, em Hiroshima, na planície de Hiroshima, na praia de Hiroshima, a bomba estalou, livre e solta, o clarão que ofuscou até o Sol Nascente.
A primeira notícia foi o silêncio da Rádio Hiroshima. Ela saiu do ar quando o capitão Tibbets liberou a ordem para a desova da "Little Boy" do ventre de sua "Enola Gay".
Na Segunda Guerra,
Tio Sam levava
shelita do Nordeste.
A bomba cristã era batizada com um nome gaiato, assim como o avião de Tibbets, a superfortaleza-voadora B-29. Na manhã clara do oito de agosto de 1945, as duas Boeings voavam tranqüilas no céu japonês; era um céu azul-zen, limpo. A força aérea do Japão já havia sido praticamente destruída, e nenhum caça foi receber as Boeings. Nem um zero. Sequer o foguetório antiaéreo saudou o vôo soberbo dos quadrimotores. De repente, o caos.Banzai, sinos de Nagasaki! Benzei, campanários do Mundo!
Na manhã de oito de agosto de 1945, a humanidade entrou na Era Atômica com o selo do sangue de centenas de milhares de vítimas. Fez 42 anos neste agosto corrente, quando a Paraíba comemora seus 402 anos de fundação. A festa da padroeira demorou-se até um dia após o aniversário de Hiroshima e Nagasaki, mas ninguém se lembrou daquela data triste.
Advinhe quem forneceu, sem saber, o urânio para as bombas que mataram Nagasaki e Hiroshima.
Deu no jornal que a Paraíba possui uma jazida de doze mil toneladas de urânio, no município de São José de Espinharas, a duas léguas da cidade de Patos. Possui mais. Na cidade de Pocinhos, a igreja Matriz guarda, debaixo da nave, uma jazida de urânio. A província da qual faz parte São José de Espinharas vai longe Seridó adentro.
Durante a Segunda Guerra Mundial, mesmo antes do Brasil entrar na dança, Tio Sam já vinha buscar sheelita no Proeminente Nordestino. O Rio Grande do Norte fornecia em abundância; mas, o Tio levou também a shelita de Santa Luzia do Seridó paraibano. Mais tarde se descobriu que a shelita de Santa Luzia não era só shelita. O gringo, calado, levou urânio.
Em agosto do próximo ano, meu bom sacristão de Santa Luzia, no dia oito, coloque, entre as intenções da Missa, as almas vaqueiras de Nagasaki e Hiroshima. São duas paróquias longe daqui, onde mataram o povo de manhãzinha. O sucesso se deu com a pólvora de Santa Luzia.
Naquele tempo, só o gringo, o tedesco e pouca gente mais sabia o que era urânio. Mais tarde, o governo brasileiro considerou o urânio estratégico. Todo bem precioso é estratégico. O ouro, porque mais caro, é mais estratégico que o petróleo, até mais que o próprio urânio.
Com ouro se compra urânio, petróleo, governos e legisladores. Nesse sentido, todos os metais nobres, todos os minerais do Brasil devem ser considerados, tratados e explorados como estratégicos. Sejam os serrotes de ouro de Princesa, a serra de urânio de São José de Espinharas, ou a sheelita matadeira e mortífera de Santa Luzia do Seridó.

18-08-1987

ESPERANÇA

Seu último leirão foi aberto por seus próprios braços e semeado com seu próprio corpo. Assim caroço, José Soares carregava o germe imortal da esperança. O ancião e decano das 34 famílias da fazenda Bela Vista morreu de estranha causa, difícil de ser qualificada pelos médicos legistas. O trator dos novos proprietários da fazenda passou por cima da casa de José Soares: eram duas águas inclinadas sobre as paredes de taipa, quase continuidade do chão. Mais acidente que mesmo casa, tão natural na superfície da terra.
Tantos anos sob a cumeeira singela (seu único abrigo). Tantos anos abrindo leirões de onde brotavam a vida. E José Soares viu sua casa e sua roça trituradas sob as esteiras do trator comprado com dinheiro emprestado pelo povo, com juros subsidiados pelo povo... para destruir a roça e a casa do povo.
O coração de José Soares não resistiu à esteira da injustiça. O trator, que deveria multiplicar o trabalho dos homens como ele, braçais do campo, começava por liberar mão-de-obra. E, máquina de guerra em vez de instrumento de paz, arremetia contra os frutos do trabalho dos homens, demolindo o teto de velhos e crianças.
De todos os moradores da fazenda Bela Vista, José Soares carregava, provavelmente, a maior safra de traumas. E sucumbiu ante a nova praga que devastava os campos e abatia a casa de sua gente. Por coincidência, a fazenda Bela Vista está situada no município chamado "Esperança". O nome foi o padre Ibiapina (antigo missionário do Nordeste) que traduziu da fala cariri. Ou verteu para a fala cariri, pois os povos primitivos têm dificuldade de criar conceitos abstratos. Assim, babani-buié, ou banabuié, vem significar "esperar grande". Se o índio criou, ou se aprendeu de Ibiapina, nem o antropólogo Elias Borges saberá. O fato é que a expressão deu nome ao lugar, primeiramente como "Banabuié". Depois, o topônimo mudou para "Esperança", no português de Ibiapina.
O fato de o recente despejo estar ocorrendo em um lugar que leva o nome de "Esperança", é cruel coincidência. Mas em qualquer Paraíba, em qualquer Pernambuco (ou em todo João Cabral), o fato é corriqueiro. Os tratores estão sendo usados mais para desmanchar roçados que para plantá-los. O que interessa, ao novo latifúndio, é terra para soltar boi. E, onde pasta o boi, o homem é um intruso. Mesmo que tenha chegado primeiro de que o boi ao local. Agora, o boi é do dono da terra, e tem prioridade sobre os antigos inquilinos. Isso é ainda mais lamentável quando se sabe que a agricultura é perfeitamente conciliável com a pecuária, o capim podendo ser plantado em consórcio com diversas lavouras.
Os tratores, um dia esperados como esperança para o campo, aparecem como a mais medonha das pragas, conduzidos pelo irmão-lobo. Pois o patrão –o opressor, o lobo do homem — é também irmão desse homem. O mesmo sangue singra nos sonhos da senzala e da casa-grande. Os sonhos devem ser diferentes, mas navegam o mesmo rio, levados pelo sono que acalanta injustos e injustiçados, dádiva de Deus aos seus santos e pecadores.
As famílias tangidas da Bela Vista, onde irão morar, trabalhar, viver e sonhar? Onde repousarão suas cabeças –como as raposas e as aves do céu–, sem covas e sem ninhos?
O decano da comunidade, José Soares, já recebeu o derradeiro leito. Outros deverão cavar as trincheiras da esperança.

13-02-1987


O MENINO NA PRAÇA

Muitas coisas ficarão para sempre na memória. O túnel da barraca, a lona preta, mais preta que as telhas enegrecidas pela fumaça do fogão da casa antiga que ficou no sítio, abandonada às pressas; os caibros tortos da barraca cheia de gente que era vizinha e que, de repente, passou a morar junto, unida pelo frio, pelo medo, pela coragem.
A umidade da esponja dos colchões, saturados pelo chão molhado, não secará nunca, mesmo depois que as últimas lágrimas tenham sido enxugadas e até consoladas. Nunca a chuva será tão forte, tão constante, tão fria, tão ruidosa como na lona escura da barraca cheia de gente, medo, esperança.
Tudo ficará molhado para sempre na lembrança. A coberta, a roupa, a tosse, o soluço de tantos acalantos. Sempre haverá um menino tossindo numa noite muito fria, chuvosa, sob a lona preta da barraca longe de casa.
Uma praça estranha, com gente passando e parando. Uns homens de ferro, sempre na mesma posição, indiferentes à chuva e à polícia. Uns homens de paletó de ferro, sem barraca, parecendo donos da praça. Aqueles homens de ferro, que não corriam da chuva nem do soldado, ficarão para sempre na memória.
A zabumba, o ganzá, a ciranda, os meninos dançando com as pessoas grandes, o povo cantando cantigas que ficarão para sempre, inesquecíveis. A viola, a moça cantadora, a lua que a chuva deixava. As palmeiras eram muito grandes, maiores que o soldado e os homens de ferro. As palmeiras chegavam perto da lua com suas folhas tremendo nas alturas. As palmeiras, também tremendo de medo, ficarão plantadas para sempre na noite longe de casa.
Um dia, tiveram uma casa numa roça verde como aquela praça.
Veio o novo dono da terra, de tudo, com a polícia e o trator, e todos tiveram que sair depressa. Na noite que choveu mais forte que o medo, tiveram que sair depressa para a casa grande junto da praça. Veio o caminhão, o soldado dando no pai com o cacete grande, de matar bode. A mãe deu um passamento. Ninguém para ouvir seu choro, nem os homens de ferro que pastoravam a chuva e o medo.
O corre-corre, as panelas quebradas, a mão do soldado, a mudança para a casa que chamavam "quartel". O pai obrigado a
deitar no chão, apanhando de novo, o cacete de matar bode, o soldado. A mãe indo verter, o soldado junto. Como a cantiga e a reza, o medo ficou decorado.
Depois, outra vez na praça. Os homens de ferro ainda estavam lá, ouvindo o comício. O pai, os vizinhos do sítio longe e antigo levantaram outras barracas de lona preta, iguais às que o soldado rasgou. Acenderam outro fogo e outra lua mais alta para o soldado não levar, como levou as latas de comida. Tomou o leite depressa, antes que o soldado quebrasse a panela. Leite da cor do medo, coalhado para sempre.
As pessoas grandes conversavam baixinho, mas dava para ouvir. Umas diziam que voltariam para a casa do sítio, o juiz ia deixar. Outras, falando ainda mais baixo, diziam que o soldado ia voltar, quando a chuva passasse, de noite. Depois, as pessoas grandes rezavam ao Pai do Céu. Diziam que o soldado matou também o Filho do Pai do Céu, mas que ele envivecera de novo, como a lua. Sabia da história, crucificada na memória.
Havia uma cruz na praça. Tinha medo que pregassem alguém nela, de noite, na chuva, para sempre.

18-07-1987



FREIRE, O FERMENTO

Um dia após o aniversário da Independência do Brasil, o ministro da Reforma Agrária e seus assessores mais próximos morreram em circunstâncias trágicas e misteriosas. O campeão da reforma agrária morreu da mesma forma que o sueco Dag Hammarskjöld, secretário-geral da ONU.
Dag dirigia-se à terrível África do Sul para ver o problema do apartheid. Cristão e poeta, Dag não se conformava com a situação subumana em que vivia, e ainda vive, a maioria negra (e nativa) da África do Sul. Mas o avião de carreira em que voava explodiu antes que o profeta da comunhão das raças chegasse a seu destino. Até hoje ainda não se esclareceram as circunstâncias da morte de Dag e de todos os passageiros e tripulantes do avião.
Do grande poeta sueco ficou o pensamento que bem definiu sua forma de sentir e viver: "se queres aventura, terás aventura –na medida da tua coragem–; se queres sacrifício, serás sacrificado –na medida da pureza do teu coração."
Assim como a tragédia de Hammarskjöld, o sacrifício de Marcos Freire talvez demore a ser explicado. Mas, um dia, a verdade se revelará à luz da História. O Brasil já vive novos tempos, e crimes que fizeram vítimas nas pessoas de seus mártires, na luta pela real independência do País, já se revelam aos conhecimento da opinião pública.
O acidente em que morreu o ministro da Reforma Agrária será mais uma oportunidade de o presidente Sarney testar os dispositivos de segurança da democracia brasileira. A grande ocasião foi a morte do presidente eleito Tancredo Neves, falecido em vésperas de sua posse — como o vice-governador da Paraíba, Raymundo Asfora, suicidado nove dias antes de assumir o cargo.
Quando Tancredo morreu, os dispositivos de segurança da recente e ainda precária democracia brasileira não tinham sido inaugurados. A morte do presidente eleito não foi suficiente para cortar o cordão umbilical que liga os serviços de inteligência à ditadura militar ainda insepulta. O velho mineiro pode até ter sido vítima desses serviços, ditos de inteligência, que mataram tantos brasileiros durante o vintênio de exceção.
As explicações sobre o desaparecimento de Marcos Freire e de toda sua equipe não podem ficar em suspenso — como os fatos que levaram à morte o general Castello Branco, quando sobrevoava o Ceará. O jatinho da FAB em que Freire voava, exclusivo do transporte de autoridades, pilotado por um coronel, assistido por um serviço de manutenção preventiva, não podia explodir facilmente –como um teco-teco paisano. As bruxas estavam soltas em plena comemoração da Semana da Pátria.
A quem interessava a morte de Marcos Freire?
—Aos incomodados e ameaçados pela perspectiva de uma reforma agrária, mesmo que tardia e limitada, quando o Brasil elabora uma nova constituição. A área conflitada, que Marcos Freire queria sobrevoar, era uma das tantas que despertavam a atenção do ministro, voltada para as áreas improdutivas do País.
Marcos é morto. Mas o fermento do seu coração há de levedar a terra que queria do povo.

11-10-1987


SETE PALMOS

Quem ler o Decreto-Lei nº 2363 irá entender porque o avião em que voava Marcos Freire caiu. Neste país de 8 milhões e 500 mil km², simplesmente não havia terra para o ministro da Reforma Agrária pousar. Depois que Marcos Freire foi morto, mataram o Incra. Eliminaram, por decreto, a possibilidade de reforma agrária no Brasil.
O Nordeste, por exemplo, ficou praticamnte imune à reforma agrária. Só poderão ser desapropriadas terras inexploradas, com área superior a 500 hectares. Só se for na plataforma oceânica, onde os sem-terra poderão cultivar sargaços –com mercado garantido em Portugal e no Japão.
Depois que Freire
foi morto,
mataram o Incra.
Os sem-terra terão de fazer como os jegues no Rio Grande do Norte. Tangidos do Seridó, os jegues devolutos foram dar no sertão à beira-mar do Mossoró. Lá, eles pastam o sargaço na vazante de Areia Branca e Tibau. Os sem-terra terão de fazer como as baleias e os golfinhos fizeram há milhões de anos. Abandonar o chão inóspito e galgar as profundas do mar. Os sem-terra terão de chorar seu lamento, como os magros onagros no galope à beira-mar de Tibau. Cantar o baião do escravo Ignácio:

Há dez coisas neste mundo
que todo mundo procura:
é dinheiro, é bondade,
água fria e formosura;
cavalo bom e mulher,
requeijão e rapadura,
morar sem ser agregado,
comer carne com gordura.


Enquanto a tecnologia das fazendas submarinas não vem, os sem-terra terão de fazer guelras dos bofes e ganhar os grotões do mar-oceano. Eles estarão, por um tempo, a salvo. Até que um dia sejam grilados, náufragos da terra e do mar.
Um dia, os peixes ganharam asas e aprenderam a cantar. Alguns chamam a Seca, como acauã; outros cantam a morte, no silêncio de rapina. Os sem-terra cantam a gemedeira, ai-ai, ui-ui, subcutânea à viola. Quando os sem-terras voarem para a Lua, ela estará minguante. Isto é, se não cortarem suas asas, como fizeram ao ministro da Reforma Agrária, ai-ai. Quando os sem-terra voarem para a Lua, lá encontrarão o dragão do latifúndio, ui-ui, e São Jorge recolhido em prisão domiciliar, no céu.
Não há lugar para os sem-lugares. A lei capenga fez minguar a Lua já encoberta pelo chapéu do capanga. Eles, os sem-lugar, foram banidos da vazante, foram banidos pelo capanga e a lei. Não há espaço para os sem-passos. Para eles, o sem-eiras, tem que haver uma solução final, uma cova comum, pois não há onde tanta gente expirar, os sem-ar.
Não surpreenderá ninguém um decreto que restrinja os sem-lugar a seu canto. O espírito da lei rezará esse cantochão, amém para os sem-além. Nos termos da lei, será criado um quinto ponto cardeal para os sem-norte, o ministério cultivará uma flor-dos-ventos para os sem-rosa. Não há vaga para eles nos canteiros de trabalho
De acordo com o milhar 2363, o jogo acabou para os sem-sorte. Não há lugar para os sem-Marcos.

5-12-1987

MORRER PELO BRASIL

O Brasil é mais perigoso na selva: os índios continuam a ser exterminados pelo invasor europeu. Na semana que findou foi a vez dos ianomamis. Uma aldeia inteira massacrada, a começar pelas crianças, estripadas e decapitadas à vista dos pais prisioneiros. Depois mataram os adultos, homens e mulheres, a tiros, para em seguida decapitá-los. Total da chacina: meia centena de pessoas inocentes, inofensivas, legítimas proprietárias do espaço que não tomaram de ninguém — pois o índio, quando chegou ao continente americano, encontrou a terra inabitada pela espécie humana.
O Brasil é mais perigoso nas cidades: os meninos de rua continuam a ser exterminados pelos adultos. No mês que findou foi a vez dos meninos da Candelária, no Rio de Janeiro. Eles já vinham sofrendo uma violência: o abandono ao próprio azar. Habitavam a terra de ninguém, calçada pública dos passantes que somos. Os meninos abandonados ao sono foram massacrados enquanto dormiam. A polícia acordou-os para o fuzilamento no meio da noite. Como aconteceu aos meninos ianomamis, o que mais importa não é o total da chacina, mas o total da dor.
O Brasil é mais perigoso nos campos: trabalhadores rurais são assassinados, milhentos, nas safras da morte, nos quatro pontos cardeais do latifúndio. São abatidos, ainda, sindicalistas, advogados e lideranças políticas e religiosas que se aliam na defesa dos camponeses. Tempo desses, no Brasil Central, a capangagem do latifúndio juntou e cercou uma centena de camponeses — homens, mulheres e crianças– durante dias e noites, matando-os de fome e sede.
O Brasil é mais perigoso nos rios: 80 garimpeiros (inclusive suas famílias) foram fuzilados numa ponte sobre o rio Tapajós, no Pará, pela polícia. Eles tinham obstruído a ponte em protesto contra o despejo de seu garimpo. O governo precisava desobstruir a ponte para dar espaço e fluxo ao grande capital. Os garimpeiros e suas famílias foram fuzilados, e seus cadáveres foram ocultados na mata. A imprensa nacional denunciou o fato. Mas, como nos crimes mais medonhos do Brasil, nada foi apurado.
O Brasil é mais perigoso no mar. A barca virou com uma centena de pessoas que estavam comemorando a passagem do ano, na baía da Guanabara. Quase todas morreram. O dono de outra embarcação negou-se a prestar socorro. Os passageiros eram ricos, gente da classe dominante. Minutos antes da tragédia, a barca superlotada havia sido abordada pela fiscalização da Marinha. Conversa vai, a barca foi em frente e ao fundo. O fato repercutiu internacionalmente, mas os responsáveis estão soltos, a barca foi resgatada ao mar e já navega outra vez.
Fatos similares já aconteceram antes, na mesma baía da Guanabara, onde uma barca "cantareira " afundou e afogou mais de cem passageiros; idem no rio Amazonas, perto de Belém do Pará. E na construção da ponte Rio-Niterói? Só em um acidente (censurado pela ditadura), 40 (quarenta) operários foram sepultados para sempre no cimento das fundações — como os rebeldes que se recusavam ao trabalho na muralha da China.
O Brasil é mais perigoso nos lagos. Durante as comemorações da Semana do Exército, na Paraíba, um barco virou na lagoa do parque Solon de Lucena, matando 40 (quarenta) civis — a maioria crianças– mais alguns militares. Aqueles barcos infláveis são muito perigosos, pois não têm lastro nem quilha, o que os deixa sem estabilidade. Os passageiros têm de ter disciplina para se manter nos seus lugares, embarcando e desembarcando ordenadamente; se não, a canoa vira. Aquele barcos são feitos para uso de soldados na travessia de rios e desembarque de praias. Mas o Exército usou a barca para fazer propaganda à custa de crianças. Resultado: morte.
O Brasil é mais perigoso no cárcere. A Polícia Militar de São Paulo invadiu o presídio de Carandiru e matou 111 (cento e onze) presos, metralhando-os nas celas. Como requinte, retardaram a entrada do socorro médico, assim como a saída dos feridos, para que não houvesse sobreviventes.
Quando e onde será o próximo massacre?

22-08-1993

Artigos do livro "A morte do vice-governador"

OS DIAMANTES SÃO ETERNOS

As investigações sobre o assassinato do ecologista Chico Mendes estão sendo presididas por uma entidade apontada pelo próprio Chico Mendes , poucos dias antes de morrer, como articuladora de sua eliminação: a Polícia Federal. Os irmãos Alves, anunciados pelo ecologista como futuros executantes de seu assassinato, participam da investigação apenas como agentes passivos, pois não têm competência para dirigir o inquérito. Não têm, também, a licença atribuída aos agentes de duplo zero de Sua Majestade, como é o caso de 007, para matar.
O assassinato de Delmiro Gouveia, precursor do aproveitamento elétrico do rio São Francisco, terá sido executado por um desses agente de duplo zero? Gouveia tinha interesses conflitantes com o truste inglês Machine Cotton. Apó a morte do industrial nordestino, o truste comprou sua fábrica e sua usina de força ao Banco do Brasil (que financiara Gouveia) e jogou o equipamento no rio. Naquele tempo ainda não havia Polícia Federal, e o mistério permanece até hoje.
Os técnicos da Universidade de Campinas (Unicamp) que foram para o Acre investigar o assassinato de Chico Mendes (a dupla Massine& Palhares), são os mesmos que fizeram as investigações que provaram ser o cadáver deformado de um jovem como sendo o corpo de Buzaidinho, filho do então ministro da Justiça, foragido e suposto de ser um dos seqüestradores, estupradores e assassinos da menina Ana Lídia (os outros suspeitos eram Fernando Collor de Mello, futuro presidente da República, e Flávio Marcílio Filho, filho do então presidente da Câmara Federal). Os técnicos são os mesmos que forjaram as investigações sobre a morte de um padre em São Luís do Maranhão, do vice-governador Raymundo Asfora e do seqüestrador que pretendia, às vésperas da promulgação da nova Carta Magna (a Constituição Cidadã de 1998), arremeter um avião contra o Palácio do Planalto.
A equipe da Unicamp concluiu que o padre morreu de sobre-esforço sexual num motel, com duas putas; que Asfora se suicidou com um tiro de magnum sem deixar vestígios do disparo no ambiente; que o seqüestrador de Goiânia, alvejado por um tiro nas nádegas, e já em convalescença, morreu da noite para o dia por causa de um microorganismo incubado nos pulmões.
No entanto, a Igreja diz que o padre, ativista da Pastoral da Terra, foi assassinado e “plantado” no motel; o ex-secretário da Segurança Pública da Paraíba, delegado federal Antônio Toscano, e o ex-secretário da Segurança Pública de Pernambuco, legista Armando Samico, não aceitam a tese de suicídio imputada a Raymundo Asfora; e o agrônomo seqüestrador de Goiânia não morreu de bala, e sim do do diagnóstico da dupla da Unicamp.
Nos dois últimos casos a frase do diretor da PF, doutor Tuma, foi a mesma, apresentando o relatório das investigações: “o laudo é conclusivo.”
As investigações sobre o assassinato de Chico Mendes, dirigidas pelas instituição que o ecologista denunciou como articuladora de sua morte, também deverão ser conclusivas. O inquérito sobre o assassinato do líder rural Chico Avelino, no Conde, será conclusivo. Aliás, o presidente da UDR na Paraíbajá se antecipou à polícia e concluiu que sua organização não participou do crime, assim como dos outrs assassinatos de pessoas ligadas à causa camponesa no Brasil, tidos como “fatos isolados”.
O presidente da UDR paraibana adiantou mais: “essa história que a UDR elaborou listas contendo nomes de religiosos que estavam sob a mira para serem assassinados não passa de invencionice (...) são forjadas pela própria Pastoral da Terra e totalmente inverídicas (...) ninguém está ameaçado de morte.
Que bom. Os listados podem dormir em paz, como os que já foram eliminados da lista e da vida — inclusive autoridades, como o deputado federal Raymundo Asfora, nove dias antes de assumir o cargo de vice-governador da Paraíba.

10-4-1989

ASFORA, TRAGÉDIA E FARSA

Nesses dois anos que se completam, hoje, da morte de Raymundo Asfora, a Paraíba assistiu uma farsa suceder à tragédia. Duas correntes surgiram diante da opinião pública: uma, que exige o aprofundamento das investigações até o fundo do poço onde possa estar a verdade; outra, que reúne esforços no sentido de evitar perguntas sobre a morte do vice-governador. Nesta última corrente, se insere o governador da Paraíba, Ronaldo Cunha Lima, que treme e empalidece quando se fala no assassinato de Asfora, e diz que está de ressaca.
Ansiosa e apressadamente, os arautos do silêncio sobre a morte de Asfora imputam à vítima a execução da própria morte. Sob o pretexto de”preservar a memória do morto”, obstaculam, de todas as formas, qualquer iniciativa de investigação sobre a tragédia. A angústia dos patronos do silêncio desde logo transforma-se em indício de suspeita: ou eles sabem, ou são eles.
Providenciaram, minutos após a descoberta do cadáver, a veiculação de carros de som, pela cidade de Camina Grande, propagando um convite e uma tese: o chamamento à população para a exéquias de Asfora, e a informação ao povo órfão de que o seu líer se suicidara. A tese apressada nasceu antes da perícia médica e policial; talvez, antes mesmo da própria morte do poeta, político e procurador do povo.
Um assessor de Asfora, Marcos Marinho, enxertou uma apologia do suicídio, no elogio de Pedro Nava, pronunciado pelo deputado na Câmara Federal. Mas o texto impresso, detectado por amigos verdadeiros do tribuno — o escritor Orlando Tejo e o promotor de Justiça Eduardo Albuquerque (Tejo é o consagrado autor do livro Zé Limeira, poeta do absurdo, com mais de trinta edições, e, hoje, Albuquerque é o Procurador Geral do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios; ambos, amigos fraternos do cronista) — diferia da gravação magnética e da taquigrafia da Câmara, assim como da transcrição nos Anais.
Vomitaram entrevistas onde se atribuía a Raymundo Asfora prenúncios de suicídio, citando, como e lavra recente, “que foi o último verso do poeta”, um mote criado por Asfora há mais de duas décadas, glosado por cantadores, publicado, e ouvido por mim, de sua boca, e do poeta Antônio José Figueiredo Agra, no tempo em que Asfora defendia Figueiredo no processo do assassinato da esposa (Cheyenne) deste trágico vate. O mote dizia algo como “minha vida é uma morte que se adia”.
Escamotearam testemunhas e depoimentos. Intimidaram, ameaçaram. O jornalista Anco Márcio, primeira voz que denunciou publicamente o complô da farsa, foi alvo de catimbas macabras. Correspondências foram violadas, inclusive deste redator. Autoridades que participavam do inquérito foram afastadas de suas funções. Mudaram as alçadas das investigações. Divulgaram boatos nas esquinas e nos meios de comunicação. Mas não conseguiram silenciar a verdade: Raymundo asfora foi assassinado e transladado para o ambiente em que foi encontrado morto.
É o que diz o perito Domingos Tochetto, do Instituto de Criminalística do rio Grande do Sul, considerado a maior autoridade em balística na América Latina; é o que diz o perito Armando Samico, fundador do Instituto de Criminalística de Pernambuco, um dos maiores nomes da criminalística brasileira, duas vezes secretário de Segurança de Pernambuco, e que, inclusive, ganhou polêmica internacional contra a Scotland Yard (no caso da morte de um piloto inglês da Boac, morto quando caiu da marquise do hotel em que se hospedara, no Recife. A Scotland queria que o piloto tivesse sido empurrado da janela, mas Samico provou que a vítima caiu da marquise, quando tentava passar, embriagado, de seu apartamento para o das aeromoças ; é o que diz Antônio Toscano, delegado federal e ex-secretário de Segurança na paraíba, que reabriu o inquérito; é o que diz o jesuíta Nogueira Machado, professor de Física na Universidade Católica de Pernambuco; é o que diz Antônio Padilha, instrutor de tiro das polícias Federal, Civil e Militar da Paraíba, e da Federação Paraibana de Tiro ao Alvo, à qual este cronista é filiado; é o que diz Geraldo Beltrão, professor de física e criminalista, escalado pela OAB para acompanhar o Caso Asfora.
A verdade indiscutível é que um disparo de .357 magnum transfixaria a cabeça de Asfora e se alojaria em alguma parte do ambiente. Mas o último impacto só existe no croqui da perícia suicidista; o ambiente está intacto: eu vi e conferi com o desenho (comic) mentiroso. E digo mais: os assassinos de Asfora estão entre os temem investigações).

6-3-1989

BRANDÃO & ASFORA

Quem me deu a notícia foi o repórter policial do Correio, Humberto Lyra, com a voz trêmula: “mataram Paulinho!” Lyra estava na calçada do jornal, junto à porta de entrada, aonde eu ia chegando para meu trabalho de copy. Foi a primeira vez que vi um repórter policial tremer. Não recebi a má notícia com surpresa. Eu já esperava um acontecimento semelhante. Saímos, eu e Lyra, no meu Chevette, sem esperar pelo carro da reportagem.
Chegamos ao local do crime antes da polícia e dos fotógrafos, o corpo quase vivo no chão, 28 (vinte e oito) perfurações, e muito mais na camioneta Parati de Paulo, estacionada ao lado da morte. O chefe de segurança da Polyutil, empresa da qual Paulinho era sócio, e que retirara o cadáver do carro, chorava. Ainda havia poucas pessoas. Depois, foram chegando a polícia, o superintendente de polícia, o secretário da Segurança, Fernando Milanez. “Ninguém evita um crime deste” — disse o secretário (anos antes, o filho do secretário da Segurança e outros rapazes da sociedade foram envolvidos num rumoroso assassinato de um taxista, denominado na crônica policial como “o crime da churrascaria Bambu”. Foram absolvidos, mas o crime não foi esclarecido. Nem evitado, como disse Milanez, pai do chefe de seu gabinete, hoje presidente da Câmara Municipal da Capital). Alguém apanhou algumas cápsulas, que identifiquei como sendo de 9 mm parabellum.
Tempos depois, o perito balístico Domingos Tochetto, considerado o melhor especialista na América latina, constatou que os estojos foram deflagrados pela metralhadora da Casa Militar de Palácio. Tochetto é perito balístico do Instituto de Criminalística do Rio grande do Sul e consultor técnico da Rossi, indústria de armamentos. É Tochetto quem redige os manuais e catálogos da Rossi, publicados em edições bilingües. Ele escreve, também, livros didáticos sobre ciências naturais. Recebo suas publicações.
Depois da morte de Paulo Brandão, estamos juntos, agora, no caso Raymundo Asfora. Conversamos nada menos que dez horas sobra a morte do vice-governador, conversa testemunhada, em parte, por Dom Hélder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife. E eu querendo ensinar o Padre-Nosso aos vigários:
— Doutor Tochetto, sei que um projétil .357 magnum de velocidade supersônica e 75 kg de energia, duas vezes mais potente que um .38 especial (carga dupla), tem capacidade perfurante para transfixar a cabeça de um homem e se alojar profundamente numa parede próxima. Mas, no ambiente em que Asfora foi encontrado morto, não existe alojamento nem impactação do projétil nas paredes, nem no teto, nem no solo, nem nos móveis; nem o projétil que o matou foi encontrado. Diante dessas evidências, desprezo até a circunstância de a vítima não ter caído da cadeira em que foi encontrada, presumivelmente após receber o impacto que lhe transfixou a cabeça e teria arremessado o corpo ao solo. O senhor já pesou esse fato?
E o doutor Tochetto, indulgente com minha pretensão de lhe ensinar balística, respondeu-me com sua voz suave e serena:
— O doutor Asfora não morreu naquela sala (Uma testemunha viu Asfora chegar, sendo carregado como se estivesse bêbado (ele não se embriagava a esse ponto). Mas a testemunha desapareceu para sempre).
Hoje, passados cinco anos da morte de Paulo Brandão e três da morte de Asfora, não me assustam os fatos de um proprietário de jornal (quase na mesma época em que Brandão foi assassinado (governo Wilson Braga), outro proprietário de jornal, oposicionista, foi executado na Paraíba, com uma saraivada de balas que lhe seccionou a artéria femoral: Fernando Ramos, o popular Fernando “Judeu”, piloto e construtor amador de aviões) e de um vice-governador serem assassinados num País que vive e morre sob um sistema capitalista predatório. Principalmente porque tanto o jornalista quanto o político denunciavam distorções desse sistema que tem na violência a base de sua sustentação.
O que me assusta é o fato dessas mortes permanecerem não resolvidas, a despeito da parafernália de recursos investidos nas investigações (perdoem a aliterância). Eis o que me leva a tremer mais que a surpresa do repórter policial Humberto Lyra, veterano na rotina da morte.
Em ambos os casos, houve a mentira nas primeiras perícias: no assassinato de Paulo Brandão, os primeiros peritos negaram que os estojos e projéteis foram disparados pela metralhadora da Casa Militar; no assassinato de Asfora, a perícia da Unicamp chegou a desenhar um croqui, um comic, indicando a trajetória do projétil transfixando o crânio da vítima, impactando e se alojando na parede da sala em que o corpo foi encontrado, sentado numa cadeira sem braços, a cabeça tombada em posição contrária à formidável energia do impacto, o braço e o revólver tombados em posição contrária à medonha energia do disparo, tudo contrariando as leis da física de causa e efeito, ação e reação.
A perícia da Unicamp não acrescentou uma foto do fictício alojamento ou do fantacioso impacto do projétil porque tal fato não existe, precisou ser inventado e desenhado no croqui mentiroso. Agora, o Caso Asfora foi reaberto e encaminhado ao Instituto de Criminalística da Bahia [que devolveria o inquérito sem se pronunciar].
Mas há outro processo, abrangente de todos os processos insolúveis do Brasil, que estará sendo julgado no dia 17 do corrente, domingo próximo: é o processo da democracia brasileira [o autor se refere às eleições do segundo turno da eleição à Presidência da República, em que Lula lá perdeu para Collor cá. Q. V. Collor, a Raposa do Planalto, Sitônio, São Paulo, Anita Garibaldi, 1992]. Se o júri popular acertar o seu veredicto, as vítimas serão resgatadas, os criminosos condenados, os inocentes libertos.

14-12-1989

MENTIRA DE CAMPINA

Faço uma aposta com quem quiser: se derem um tiro de magnum.357 na cabeça da estátua de Raymundo Asfora, ela não fica no lugar. Um bom teste para tirar a dúvida se o cadáver de Asfora ficaria sentado depois de um impacto de 75 kg (duas vezes mais que um tiro de .38 carga-dupla), à velocidade supersônica de 380 mps, de um projétil magnum .357 expansivo (hollow-point), semi-jaquetado, que lhe transfixou a cabeça e desapareceu sem deixar segundo impacto numa sala fechada.
Só o bang supersônico do disparo, mais a explosão do impulsor, quebrariam algumas das muitas vidraças (portas e janelas) que fecham o ambiente — conhecido pelo jargão das gravadoras como piscina acústica — e trincariam alguns dos tantos cristais, inclusive tulipas, que nem sequer tombaram, repousando em três móveis dentro da sala.
O ideal seria fazer o teste com algum dos mandantes ou com o pistoleiro que executou Asfora, ou, ainda, com os peritos mentirosos que desenharam um croqui de estória de quadrinhos (comic), mostrando uma trajetória falsa do projétil e uma impactação com alojamento, mais falsos ainda, na esparede situada à esquerda do cadáver sentado numa cadeira sem braços, à frente da meiota de uísque, copos em pé, cigarro pousado na calha do cinzeiro, o revólver sobre a mesa, a cabeça sobre a mão que teria disparado a arma. Tudo contrariando a energia do tiro: cabeça, tronco e membros, mais o revólver, que não caiu no chão com o coice cavalar (Asfora estava sentado à extremidade da mesa, junto à cabeceira).
Dez meses depois do assassinato, a detectação de resíduos de chumbo na mão direita da vítima. Ora, um cartucho semi-jaquetado por camisa de cobre e disparado por revólver calibrado não expele resíduo de chumbo; e, se tal houvesse na mão decomposta do cadáver, havia também na atmosfera poluída pelo nitrato de chumbo da gasolina, a tinta da casa em reparo, na pomada Calminex que a vítima usara na véspera, justo na mão direita. Encontraram resíduos de chumbo, mas não encontraram o projétil que nem expelira os resíduos, pois estava revestido de cobre! E cadê os resíduos de cobre? A perícia se esqueceu de falar neles.
Por que, até hoje, não depôs Manuelzão — a pessoa que acompanhou Asfora até sua porta na madrugada do crime, exatamente o motorista do então prefeito Ronaldo da Cunha Lima, e por ordem do patrão, segundo revelações do ex-prefeito à revista A Carta, antes da missa de sétimo dia?
Por que nunca foi ouvido o agente federal que declarou diante dos presentes em volta do cadáver, que se fosse constatado o homicídio entregaria os autores em 24 horas? [O agente foi logo removido de Campina Grande]. Por que preferiram hipóteses intangíveis às provas tangíveis, para forjar um suicídio diante da evidência de um homicídio, chegando-se ao ponto de traçar um diagnóstico psicológico do morto — empresa difícil à psicologia — e de se reconstituir um suicídio não testemunhado — procedimento inédito na criminalística?
Por que destruíram ontem um monumento vivo, para levantar hoje um monumento inanimado, em ano eleitoral?
Por que adulteram, com enxertos apócrifos e apologistas do suicídio, o elogio de Asfora ao escritor Pedro Nava, fato constatado pelo promotor Eduardo Albuquerque, pelo escritor Orlando Tejo, e pela taquigrafia da Câmara?
Por que ver conotações de auto-destruição em veros que Asfora teria criado na madrugada de sua morte, decorados e transmitidos ipsis litteris pela memória privilegiada do chofer “intelectual” do prefeito Cunha Lima, acompanhante de Asfora na sua última derrota de bares — versos que este colunista e que outros amigos comuns em Asfora já conhecíamos pelo menos desde 1965, e, portanto, 22 anos antes do poeta ser assassinado na noite fria de Campina?
Por que a pressa de anunciar, em carro de som, o suicidamento de Asfora, antes das investigações mais elementares, quando as circunstâncias da morte eram mais que suspeitas, como se o carro de som já estivesse de plantão para a falsa notícia?
Por que tantas obstaculações oficiais diante das tentativas de novas perícias, investigações e pesquisas, quando o trono de Palácio é ocupado por quem se diz irmão de Asfora?
Por que o redator da prefeitura de Campina Grande teve o ato falho e o prazer de convidar amigos para homenagem ao morto?
Por que o então secretário de Segurança, delegado federal Antônio Toscano, o perito Domingos Tochetto, cnsiderado o maior balístico da América Latina, o legista Armando samico, e credibilidade em foros internacionais, o físico Nopgueira Machado, professor da Universidade Católica de Pernambuco, e o instrutor Raymundo Padilha, terinador de tiro da equipe campeã na Olimpíada Nacional da Polícia Federal, não aceitam a farsa e a imputação de suicídio a Asfora?
Por que um vice-governador eleito é assassinado nove dias antes de sua posse, e tudo fica por isso mesmo?
Por que este articulista, atirador filiado à Confederação Brasileira de Tiro ao Alvo (CBTA), e o advogado e físico Geraldo Beltrão, insistem para que as investigações sobre a morte de Asfora sejam esgotadas?
Porque a verdade da vida de Asfora incomodava a muitos, e porque a verdade de sua morte incomoda muito mais.

17-1-1990

ASFORA NA GLOBO

O Caso Raynundo Asfora será analisado hoje, às 22h30, no programa Linha Direta, da Globo. Transmitido para todo o Brasil, o programa dirigido pelo jornalista Hélio Costa vai ao ar, na paraíba, através da afiliada TV Cabo Branco, canal 7. O interesse de Costa pelo Caso Asfora pode ter ampla repercussão, pois, além da audiência de seu programa, o jornalista atinge um público muito especial: ele é deputado federal por Minas Gerais, e a morte misteriosa do vice-governador e ex-deputado federal é uma interrogação para seus antigos colegas de parlamento. Recentemene, estive na Câmara Federal, em Brasília, e vi que era grande a expectativa dos deputados sobre o enforque de Costa no Caso Asfora.
O próprio Costa me revelou sua convicção de que Asfora foi assassinado. Conversamos, na Câmara, poucos dias após a gravação do programa. Apesar de ter sido procurado pela produção da Globo para prestar meu depoimento, não foi possível contato com a equipe. Nas duas vezes que a reportagem da Globo esteve na Paraíba, eu me encontrava no Rio de Janeiro e em Brasília. Mas ainda passei, por telefone, os resultados de minhas investigações à produção do programa.
A equipe de Linha Direta ouviu todos os pesquisadores que estudaram o Caso Asfora, desde Domingos Tochetto, no Rio grande do Sul, a Armando Samico, em Pernambuco, e Antônio Toscano, na Paraíba. Ninguém foi omitido. Apenas alguns dos suicidistas, como os legistas da Unicamp. São Paulo, se recusaram, estranhamente, a depor. Mesmo os que tentaram, por diversas vezes, obstacular as investigações (como o governador Ronaldo Cunha Lima), não foram poupados pela reportagem — que não se intimidou diante da arrogância, da chantagem e da truculência.
Foram muitas as tentativas de intimidação para que o trabalho da Globo não se realizasse, como são muitas as tentativas para que o inquérito cobre a morte de Asfora não tenha continuidade. O jornalista Anco Márcio, primeiro a levantar, na Imprensa, suspeitas sobre a farsa de suicídio de Asfora, foi novamente ameaçado.
Apesar de tudo, o programa está concluso e vai ao ar, apresentando alguns fatos novos sobre a tragédia. Outros fatos, ainda confidenciais, serão liberados oportunamente. O Instituto de Polícia Técnica da Bahia, solicitado pela Justiça da Paraíba, prepara laudo sobre o assunto. Um detalhe: o processo, remetido pela Justiça da paraíba ao instituto baiano, levou quatro meses para chegar ao destinatário. E, a rigor, não chegou: o destinatário foi quem mandou fazer busca nos Correios para poder receber a documentação, via Sedex, depois que a irmã de Asfora, minha amiga Myriam, foi pessoalmente a Salvador para tentar descobrir o paradeiro da correspondência.
O mesmo aconteceu com uma indústria de armamentos bélicos, também solicitada pela Justiça da Paraíba a emitir parecer técnico. O lóbe montado pelos suicidistas, temerosos que a verdade sobre a morte de Asfora seja revelada, é poderoso — o que demonstra o nível de influência e coação do complô ainda oculto, mas que será desmascarado.
Além da Globo, outros veículos e comunicação, de vários estados brasileiros, já pautaram pesquisa de reportagem sobre o Caso Asfora. O prestígio de peritos que atestam o assassinato do tribuno brasileiro, como é o caso de Domingos Tochetto — consultor da Indústria de Armamentos Rossi, consultor da revista magnum (especializada em armas e munições), e perito do Instituto de Criminalística do Rio Grande do Sul — tem despertado a atenção da imprensa nacional e da comunidade legista brasileira. Outro perito de renome internacional, e que não aceita a farsa suicidista, é o professor Armando Samico, fundador do Instituto de Criminalística de Pernambuco e respeitado até pela Scotland Yard.
Os que investiram seu tempo e sua segurança para desmascarar o crime contra Asfora começam a ver a vitória de seus esforços, como o intimerato Geraldo Beltrão, físico e criminalista. Mas vamos ao Linha Direta, logo mais na Globo. Depois, há outros informes.

10-6-1990

O SILÊNCIO DO UIRAPURU

Você viu e ouviu, não fui eu quem disse. Foi Hélio Costa, ex-governador de Minas Gerais (concluiu o mandato de Tancredo Neves), deputado federal e ex-diretor da Globo na sucursal de Nova York — um jornalista brasileiro de nível internacional. Pois Hélio Costa, na última quinta-feira, dedicou todo o seu programa Linha direta para dizer ao Brasil que Raymundo Asfora foi assassinado, e não se suicidou, como querem os suicidistas e autores intelectuais de um crime nem tanto perfeito.
Dessa vez não fui eu quem disse, nos jornais da província, que Asfora foi vítima de um complô criminoso, e que a sociedade brasileira tem sido vítima de um complô silencioso sobre a verdade da morte do vice-governador eleito e insubstituível. Dessa vez foram Hélio Costa e a Rede Globo de Televisão, em uma hora de programa nacional, horário nobre. A audiência estourou em todo Brasil e, principalmente, na Paraíba.
Se você não viu, nem ouviu, ainda pode pegar a reprise que será levada, brevemente, pela TV Cabo Branco. Ou, ainda, pegar uma carona no vídeo que muita gente gravou documentalmente. Na próxima quinta-feira, ainda tem mais: alguns detalhes que não couberam no programa do dia dez, serão apresentados no início do Linha direta.
Se você sabe de alguma coisa, se tem alguma informação que possa elucidar o crime de que a Paraíba e o Brasil foram vítimas, ligue para o Linha direta, confidencial e sigilosamente.
O impacto do roteiro apresentado por Hélio Costa teve um efeito notável sobre a opinião pública paraibana e brasileira. Em todo o País, amigos de Asfora, agora convencidos da realidade de seu assassinato, estão se articulando para que as investigações sobre a morte do tribuno sejam levadas até o fim, com a devida indicação dos culpados. O lobe do silêncio e da farsa sobre a morte de Asfora foi vencido por um jornalista sem ligações com a Paraíba, numa prova que o vice-governador e ex-deputado paraibano era um patrimônio da cultura brasileira.
Já se articula, na Câmara Federal, a formação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar o assassinato do tribuno brasileiro. A inquietação dos parlamentares atinge, inclusive, o Senado, composto de muitos representantes oriundos da Câmara dos Deputados, nostálgicos da palavra luminosa de Asfora.
Hélio Costa apresentou, quinta-feira última, o seu melhor programa da série atual, em que levanta crimes insolúveis para o conhecimento da consciência do País. O Caso Raymundo Asfora, intitulado no programa de Costa como A morte do poeta, justificaria, por si só, todo o esforço que a equipe da Globo vem desenvolvendo para maior transparência e justiça da criminalística brasileira. O roteiro foi fiel à crônica dos fatos. Apenas alguns detalhes poderão ser revistos, como os nomes das últimas pessoas a edtarem com Asfora, e seu acompanhante, ou seus acompanhantes, no último trajeto para sua casa.
É de se lembrar a entrevista concedida pelo então prefeito de campina Grande, Ronaldo Cunha Lima, à revista A carta, antes da missa de sétimo dia de Asfora, quando o prefeito (agora governador) afirmou que mandara seu motorista acompanhar Asfora até em casa. Inexplicavelmente, o motorista Manuelzão, último acompanhante do vice-governador, (segundo Cunha Lima) nunca depôs nos inquéritos instaurados.
Que tem medo de novas investigações sobre a morte de Asfora?
Só os suicidistas, aqueles que, por autoria ou co-autoria, teme que o silêncio da Granja Uirirapuru cante a sua verdade.

12-5-1990

MASSINE, MENGELE & PALHARES

Ana Lídia foi seqüestrada, estuprada e assassinada no dia do casamento de Flávia Marcílio, início da década de 70, Brasília. Foi fácil ocultar o cadáver de Ana Lídia. Era um pequeno cadáver de menina, um pequeno cadáver de borboleta, leve e azul. A noiva era belíssima (Flávia Marcílio foi rival de Geraldine Chaplin, quando ambas disputaram o mesmo príncipe mal-encantado; mas Flávia terminou ficando com o promotor Eduardo Albuquerque, que não tinha entrado na história), a noiva é belíssima, irmã de Flavinho; a filha e o filho de Flávio Marcílio, deputado federal pelo Estado do Ceará e nome do edifício da Câmara dos Deputados, em Brasília.
Ana Lídia não sobreviveu à noite de núpcias: os legistas encontraram esperma até nos pulmões. As suspeitas apontaram Buzaidinho, filho do Buzaidão, então ministro da Justiça da ditadura militar; Fernandinho, filho de Arnon de Mello, senador por Alagoas; e Flavinho, o irmão de Flávia, a noiva ainda hoje reqüestada para modelo fotográfico dos diamantes mais eternos, que ficam mais belos ao seu colo.
No dia do casamento de sua irmã, Flavinho foi suspeito de seqüestrar, estuprar, matar e, depois, ocultar o cadáver da irmã de um amigo. Freud explica? Se diz que o irmão de Ana Lídia não honrara o compromisso torpe de trazer a maconha, já paga, para os amigos Flávio Marcílio Filho, Antônio Buzaid Filho e Fernando Collor de Mello [fututo presidente do Brasil]. Era a ditadura, e os suspeitos de falar sobre o assunto foram presos. Na ditadura militar se descobria tudo, s dscobriu tudo, menos quem seqüestrou, estuprou, violentou e matou Ana Lídia, e, depois, ocultou o cadáver-criança.
Buzaidinho, o principal suspeito, desapareceu. Dizem que foi para a França, la douce France, exílio que acolheu, também, Fernandinho, que foi morar com a irmã, esposa de um diplomata brasileiro. Naquele tempo, os maus brasileiros (assim chamados pela ditadura) iam para a França.
— “Não foi Fernandinho” —, me disse Flávia, a bela que roubou seu noivo à Geraldine, filha de Chaplin — “Fernandinho passou o dia lá em casa, com seu pastor-alemão”.
Tempos depois, apareceu no Brasil um cadáver jovem, vítima de acidente, mais irreconhecível que Ana Lídia, a que era leve e azul. “É o cadáver de Buzaidinho” — disseram alguns familiares. “É o cadáver de Buzaidinho” — afirmaram os dois professores de Medicina Legal da Universidade de Campina (Unicamp), São Paulo, convocados a sepultar o caso. O cadáver jaz e Buzaidinho faz — na eternidade inimputável, irresponsável perante a lei como os reis do Brasil, na dinastia de Bragança. Assim foi o começo da carreira gloriosa de Massine & Palhares, o Calvo e o Cabeludo, a dupla de Unicamp (depois que Chibata, o legista da ditadura, ficou desmoralizado com o caso Vladimir Herzog, executado no cárcere da tortura, ao qual atestara suicídio).
Acharam a caveira de um velho. “É a caveira do velho Mengele” — disseram os coveiros do falso Buzaidinho. E Mengele, o médico alemão acusado de sacrificar crianças-cobaias nos laboratórios nazistas, deixou de ser procurado pela ditadura no Brasil — assim como Buzaidinho, o mengele de Ana Lídia. Peritos alemães contestaram o laudo de Massine & Palhares. Mas, para o governo do Brasil, exílio de todos os carrascos, Mengele é morto, o caso é sepultado.
O cadáver do padre comunista, executado pela repressão, foi desovado num motem em São Luiz. A polícia escalou uma dupla de putas para dizer que estavam fazendo suruba com o padre. E a dupla da Unicamp atestou que o padre morreu de parada cardíaca, causada por sobre-esforço sexual. “Mataram o padre duas vezes: física e moralmente”, me disse Hérder, arcebispo de Olinda e Recife. E supultaram o caso.
O vice-governador da Paraíba, Raymundo Asfora, foi encontrado morto, sentado à extremidade de uma mesa, numa sala fechada por vidraças, a cabeça transfixada por um tiro de magnum .357 — munição com dez grains de pólvora — capaz de impulsionar seu projétil à velocidade supersônica de 380m (trezentos e oitenta metros) por segundo e 75kg (setenta e cinco quilogramas) de energia cinética no impacto, por polegada quadrada.
O cartucho .38 duplo (especial), com as mesmas dimensões, recebe quatro grains de pólvora, e seu projétil, subsônico, desloca 37kg (trinta e sete quilogramas) de energia sinética por polegada quadrada — o que é um grande impacto, capaz de parar e derrubar (stop-power) um homem no ataque. No entanto, o projétil do magnum— a que se atribui a morte de Asfora — não teve energia para arremessar o corpo da vítima embriagada ao chão (do ex-senador pelo Paraná François Leite Chaves a respeito da morte do vice-governador paraibano: “quem conheceu Asfora sabe que ele não se suicidaria deixando meio litro de uísque em cima da mesa), nem para impactar no ambiente, desaparecendo na sala hermeticamente fechada.
‘O meu magnum rompe três tábuas de sucupira (Ormosia) seca, com uma polegada e meia, e se aloja na quarta’ — disse eu à dupla (que se disputa) Massine & Palhares, em nosso terceiro encontro. “A cabeça de Raymundo Asfora não era de sucupira”— respondeu-me cinicamente um deles. ‘E o projétil, que não se alojou no ambiente, nem foi encontrado?’, perguntei aos gaios cientistas: “alguém achou e levou como suvenir”, responderam-me o juramentado (à época, só Palhares era perito reconhecido por lei; o outro, Massine, era perito de araque; depois, a dupla brigou, trocou tapas no laboratório da Unicamp, e se acusou mutuamente. Massine revelou à revista Isto é que pairava dúvidas sobre o laudo de Asfora). E os dois, afinados a uma só voz: “foi suicídio”.
— “Doutor Asfora não morreu naquela sala”, me disse Domingos Tochetto, considerado o maior balístico da América Latina, solicitado pelo então secretário de Segurança da Paraíba, delegado federal Antônio Toscano, a periciar o assassinato do vice-governador.
No seu laudo, Massine & Palhares tiveram que desenhar o alojamento do projétil na parede, pois nunca poderiam fotografar um impacto que nunca existiu nem ainda existe. Uma garatuja malfeita como a mentira (para fazer o quadrinho (comic), poderiam ter chamado a prata da casa, Deodato Filho, que desenha, desde a Paraíba, comics para as maiores editoras americanas, sem sair da terra, remetendo os originais pelo computador).
Sábado último, em simpósio promovido pelos estudantes de Direito de Campina Grande, Massine de Mengele ainda reafirmou, em resposta à pergunta da platéia, sua mentira suicidista. Mas se recusou a expor o Caso Asfora, intimidado pela presença física do advogado e físico Geraldo Beltrão, designado pela OAB para acompanhar o processo.
Na véspera, o debate de Beltrão X Massine fora adiado, a última hora, pelos organizadores. Alertado pelo cronista, Beltrão e eu comparecemos, munidos de catatau de documentos, à noite do desconvite. Massine, que já concedeu amplas e desembaraçadas entrevistas à Imprensa sobre o caso, quando foi convidado a compor a mesa passou por nós. De cabeça baixa, olhou de soslaio para o catatau, coçou o nariz, e alegou, pela primeira vez, que o assunto estava sub-judice. E calou-se.


24-4-1991

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Excerto do livro "Dom Sertão, Dona Seca"


FLORAÇÃO NO SERTÃO:
UM REPENTE VEGETAL

Aventura em cores no Raso da Catarina,
Sertão da Bahia, na busca do verde bravo
- guardado pelos duendes da caatinga
onde vivem os últimos Pankararés.

O sertão é um paraíso[1].
Euclides da Cunha

Verde veloz

Deus fez o mundo em sete dias, mas refaz a caatinga[2] em apenas uma noite. Pela manhã, com a água da chuva ainda escorrendo no chão carrasquento, a caatinga já se transforma no arco-íris vegetal que faz a festa dos homens e dos bichos. É a mudança mais brusca da natureza. O cinza transforma-se no verde salpicado de flores multicores: vermelhas, amarelas, azuis, brancas, violetas... malva brava, lava-pratos, vassoura, vassourinhas, catingueira.

E os pássaros cantam outra vez, retornados da migração sazonal. Aves e borboletas enchem o repente verde com suas pétalas aladas.

O Sertão é fértil porque é seco. O período normal da estiagem — oito a nove meses — permite às plantas e à terra um repouso letárgico (pousio) que restabelece o ambiente para a formidável explosão do inverno. O fato surpreendeu, no começo do século, o carioca Arrojado Lisboa, primeiro titular da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, levando aquele mestre a emitir o parecer que se tornou clássico:

as sementes aí têm um poder germinativo desconhecido no resto do Brasil[3].

Se chovesse mais no Sertão, o solo raso não resistiria à permanência do verde. Eis um problema que tocaia os defensores da irrigação como panacéia para o Semi-Árido Irregular.

É no Raso da Catarina que o repente verde explode com mais energia, como testemunha Euclides da Cunha:

sobre o solo, que as amarílis atapetam, ressurge triunfalmente a flora tropical. É uma mutação em apoteose[4].

Nos anos de inverno, a floração da caatinga da Catarina ocorre no período de março até agosto.

A planura e as areias do Raso otimizam a infiltração da chuva, neutralizando a corrida da água, mundo abaixo, para o mar (run off). A vegetação da caatinga e suas folhas secas formam um tapete protetor (mulchagem) sobre a terra, reduzindo ainda mais a enxurrada e também a evaporação. E as raízes têm mais capacidade de captar água (força osmótica) nos areais de que no "carrasco"[5]. Os anos de inverno são também os mais férteis, pois a chuva traz para a terra o nitrogênio da atmosfera — liberado pelos relâmpagos genesíacos do Sertão.

Segundo o ambientalista Guimarães Duque, “o bom aproveitamento da água equivale ao aumento da chuva[6].”A média anual de chuva é de 400 mm: a metade da média do Sertão. Dos 800 mm que chove no Sertão, apenas 20% ficam na terra[7]. O resto se evapora ou corre mundo afora (a evaporação é de 2.000 mm, onde houver água acumulada para tanto).

Silva horrrida, selva tórrida

O Raso da Catarina é um planalto de areia e espinhos perdido no norte baiano, a 400 km do litoral. Suas areias vermelhas — como se fossem embrejadas de sangue — indicam presença de ferro. Os geógrafos do Radambrasil assim resumiram a aspereza do Raso:

“todo o conjunto forma um ambiente onde é muito penoso penetrar. A vegetação armada de espinhos e a presença de espécies urentes, o emaranhado da vegetação arbustiva e das nanofanerófitas, mais as temperaturas elevadas e as areias quentes e soltas, dificultam extremamente os caminhamentos[8].”

Eis a silva horrida de Martius[9], esta selva selvaggia e aspra e forte[10] de Dante, as pseudo-steppes tropicales dos geográfos franceses[11]. “Um complexo vegetacional existente apenas no Nordeste do Brasil”, informa Sérgio Tavares ao Centro Técnico Aeroespacial[12].
As areias parecem embrejadas
de sangue

Para os sertanejos, é o Raso. Assim denominam as planuras de seu deserto. O Raso da Catarina é formado pela Reserva Ecológica, pela Reserva Índigena dos Pankararés e pelas fazendas que se estendem do planalto arenoso até à parte mais baixa, as "terras duras". Uma surpresa do deserto: ao leste da Reserva Ecológica, nas cabeceiras do riacho Logradouro[13] (afluente da margem esquerda do São Francisco), a Mata da Pororoca, sempre verde, com suas árvores de porte: cedro, sucupira e pororoca — que lhe dá o nome.

O Raso não é o lugar mais seco do Nordeste. O pólo seco do Brasil encontra-se no município de Soledade, na Paraíba, com média pluviométrica de 252 mm/ano (o deserto começa em 250 mm). O Raso é a maior extensão de caatinga sem fontes de água. Do começo da Reserva Ecológica, até se encontrar a primeira casa – a de Dedé da Catarina –, se anda um dia de jipe. Mais adiante se chega a São Francisco, povoado de 40 casas.

"O Raso era dos caboclos", diz Miguel Varjão, 81, proprietário da fazenda Barra do Gama. "Catarina foi a primeira proprietária do Raso. O finado João Pedro comprou a terra à Catarina por 500 réis", explica o vaqueiro, rijo e lúcido.

As guerras do Raso

— Alguns populares dizem que o nome Catarina veio de uma louca que se perdeu e que teria morrido na caatinga. Mas Varjão esclarece a dúvida: "Éramos sete vaqueiros; achamos a doida perdida no Raso, com um saco de roupas e outro de livros. Uma professora que perdera o juízo e se embrenhou na caatinga. Trouxe a mulher para minha casa. Depois foi embora, para morrer no Brejo do Burgo". Varjão não sabe mais o nome da louca do Raso, nem o ano do evento: "Foi na década de quarenta. Que guerra? a de Lampião?"

O facínora fazia do Raso o seu coito mais seguro. Alguns de seus "cabras" eram naturais da Catarina, como Azulão[14], cujos familiares ainda moram no lugar.

O Raso é fértil de guerras. Este ano faz cem anos da Guerra de Canudos, a guerra do Brasil contra o Sertão, onde a República perdeu um general e milhares de soldados lutando contra o povo do Conselheiro. Canudos é uma cidade periférica do Raso, sitiado ainda por Monte Santo, Euclides da Cunha, Jeremoabo, Paulo Afonso, Glória, Rodelas e Uauá.

O jornal O Estado de S. Paulo cobriu a tragédia, com uma reportagem seriada do seu correspondente — o engenheiro e gênio Euclides da Cunha. Assim nasceu a epopéia Os Sertões[15].

Reservas do deserto

O Raso da Catarina é o maior e mais seco planalto que se derrama no Sertão da Bahia. Durante o verão, secretas vertentes escondem seus fios d'água nas areias zelosas do deserto ¾ palavra ampliada para "desertão", mas sintetizada em "sertão"[16]. No estio o gado cava, come e bebe as batatas d'água das macambiras e dos umbuzeiros — reservas dessas plantas para os verões.
"Os frutos dos cactos também se comem, mas não tanto
como na Europa"

A Petrobrás cortou o planalto com veredas que permitem atravessá-lo em todas as direções. Trilhas de areia, só acessíveis a veículos com tração nas quatro rodas. Pesquisando petróleo, a Petrobrás descobriu água abundante e de boa qualidade a 200 m. O petróleo faz parte do estoque estratégico para o futuro. A água é necessária só para o homem, pois as plantas e os bichos do Raso têm outra economia hídrica.

É no areal espinhento que o gado escapa na seca. Os bichos grosam os espinhos dos cactos com os chifres e comem a polpa aquosa. "Na seca, o gado escapa no espinho; aqui, nas terras duras, a caatinga não sustenta os bichos num estio prolongado" ¾ afirma Dedé da Catarina.

Um dos exemplos mais eloqüentes de que o Semi-Árido Irregular é viável, mesmo no estio, está no ecossistema do Raso da Catarina. Na Seca, sua caatinga nutre seus animais silvestres e seus gados ¾ que sobrevivem sem fontes de água.

Embornal da seca

"Espinho" é como as pessoas chamam à pastagem nativa do Raso: facheiro, xique-xique, coroa-de-frade, palmatória, rabo-de-raposa. As duas últimas são tostadas pelo fogo para alimentar o gado. Os mandacarus levantam-se altaneiros nas terras duras, os carrascos da Catarina. A pastagem é formada, ainda, de gramíneas e de plantas arbustivas, como o marmeleiro, rico em carboidratos, que no inverno oferece suas folhas ao gado, e, no estio, as cascas; e de leguminosas: guandu, labe-labe, mucunã preta e o quipembe, de folhas e bagens palatáveis e nutritivas.

A caatinga nutre também seu povo na seca. Os sertanejos descascam a batata da macambira e dela fazem massa, que cozinham como macaxeira; retiram os espinhos da coroa-de-frade, ralam-na, espremem e botam para secar; quando essa farinha seca, fazem cuscuz. Do facheiro, do xique-xique e da palma, comem a fruta no inverno; no estio, a palma é descascada e aferventada; joga-se a água fora e cozinha-se ou refoga-se, temperada e cortada em pedacinhos. Comem ainda o entrecosto do pau-da-serra e o bró do ouricuri[17].

Frutos de cactos são iguaria no Mediterrâneo. Na sua Viagem pelo Brasil, Martius já observara que

"essas plantas singulares, sem folhas, dotadas de especial capacidade de atrair e condensar a umidade da atmosfera, servem de refresco para os animais sedentos. (...) Os frutos dos cactos também se comem, não tanto, porém, como no Sul da Europa"[18].

Quando o Brasil adquirir o hábito de comer frutos de cactos, a forragem dessas plantas será o subproduto de uma fruticultura exclusiva das terras áridas ¾ já pródigas de icós, juás, umbus, pinhas, muricis, cajus, cajuís, e de tantas outras do tempo verde.



Fauna acuada

A fauna do raso ainda é abundante: veados, caititus, tatus, tejus, pebas, preás, coelhos, mocós, onças, gatos, abelhas, emas, seriemas, sericóias, pacus, rolas bravas e uma grande variedade de aves, atraindo caçadores àquele espaço ¾ embora a caça seja proibida em todo o território nacional.

O Ibama está sem condições de trabalho, ou ¾ como algumas espécies ¾ ameaçado de extinção. Suas instalações foram abandonadas ao intemperismo do deserto. As casas que deveriam abrigar os guardas vêm sendo depredadas por grupos de caçadores ¾ que, numerosos e armados, intimidam os guardas solitários. Como reconheceu o Radambrasil: “no Raso da Catarina, por exemplo, o ecosistema se mantém em virtude da própria hostilidade[19].” Ainda bem que os bichos têm a proteção dos avôzinhos – as entidades que vaquejam as matas do mundo Pankararé.

Matas mal-assombradas: no começo dos anos sessentas virou um carro da Petrobrás, na ladeira da Cabeça do Gato. O motorista morreu. Ainda hoje aparecem faróis acesos na noite do Raso. A luz chega até a cancela da Casa do Ibama, na entrada da Reserva Ecológica. Quem tem coragem para ir ver, não encontra nada. Mas algumas pessoas, como Dedé da Catarina, já encontraram caveira de gente na campa do Raso.

Os topônimos são quase todos precedidos da palavra baixio, pois o Raso é uma grande planura: Baixio do Cachimbo, do Fogueteiro, da Juremeira, do Rancho da Palha, da Arapiraca, do Jatobá da Onça, do Veado, da Imburana Ferrada, do Juazeiro, da Queixada de Mané do Bode, da Lagoa Seca, do Araticum, da Catarina, do Sítio do Chico ¾ onde vivem os últimos Pankararés.

Em tempo: quem quiser acesso à Reserva Ecológica tem de justificar seu pedido à delegacia do Ibama (km 40 da BR-110, Jeremoabo Paulo Afonso).

Vaqueirice

Os pastos nativos ainda mantém ¾ principalmente na seca ¾ os rebanhos bovinos, ovinos, caprinos e eqüinos dos criadores da região. O gado do Raso conserva as características de sua origem européia. No gado bovino, de porte, vêem-se traços das raças Canária, Asturiana, Lídia, Almeriana e Pirenaica, que, mestiçadas, deram origem à Caracu e Curraleira. E há os resistentes cavalos Nordestinos, descendentes dos Garranos portugueses, por sua vez descendentes dos Berberes.

É de se lembrar o aboio nostálgico de Guimarães Duque:

"quando os vaqueiros de Garcia D'Ávila, da Casa da Torre, trouxeram o primeiro boi para o São Francisco, eles ensinaram uma lição de ecologia que duraria séculos"[20].

As cabras descendem das Pretas Murcianas, conhecidas por Craúnas, ou Pretas Retintas; das Serranas, ou Trasmontanas, e das Brancas e Pardas Pirenaicas, apelidadas de Marotas[21], Moxotós e Gurguéias; das simplesmente Azuis, encontradas na margem norte do Mediterrâneo, da Ibéria aos Bálcãs; e das Las Manchas, rebatizadas como Nambis, Landis ou Uriós, de orelhas pequenas, que lhes permitem acesso aos espinheiros. Estas últimas têm menos odor hircino (almíscar dos caprinos), e, por isso, seu leite é o mais palatável ¾ sabe Zuzu, pastora Pankararé.

A ovelha Rabo Largo (assim chamada por concentrar na cauda uma reserva de gordura para o estio), de pouca lã, descende da Damara ibérica; e a deslanada Cabeça Preta descende da Somali africana, que também tem reserva de gordura, acumulada numa geba na garupa. E há um tipo raro de ovelha, de lã e quatro chifres, conhecida na região pelo nome de Cocorobó ¾ topônimo do açude que alagou Canudos. Originária da Península Ibérica, a ovelha de quatro chifres também é encontrada no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, onde é conhecida como “Crioula”[22].

Algumas cabras e ovelhas são criadas em regime de vaqueirice[23], ou seja, os animais são de terceiros, e os índios, ou vaqueiros, ficam com a sorte de uma em três crias. Os índios não têm bois e cavalos; sua pobreza só lhes permite criar pequenos ruminantes.

O vinho ajucá

Os Pankararés são uma possível blendagem de Abacatiaras, Amoipiras, Brankarus, Camacãs, Cariris, Pataxós e Procás, pertencentes aos grupos Gê, Tapuia e Tupi. As margens do São Francisco são uma aljava de raças indígenas, e os Pankararés absorveram sangue e traços culturais de todos esses povos. Recrutados para a guerra do Paraguai, trouxeram para a sua língua palavras guaranis. Mais recentemente, incorporaram ao seu variado patrimônio genético os elementos negro e branco.

Os Pankararés ocupam duas reservas: a do Chico, no Raso, com 29.597 ha; e a do Brejo do Bugre Pankararé, na periferia do Raso (município de Glória[24]), com 17.700 ha, sob a chefia de Afonso Cacique. Em Brejo do Bugre os índios têm tido conflitos com neo-brasileiros (invasores brancos), mas, no Chico, vivem isolados e em paz. Seu chefe é Lino Caçador. É no Chico que se realiza a Festa de São Roque, no dia 15 de agosto, quando toda a sociedade Pankararé se reúne. O costume foi iniciado pelo patriarca Saturnino, já falecido, mas sempre lembrado pelo seu povo.

Aculturados, os Pankararés praticam a religião católica. Mas dançam o toré[25], como na homenagem a São Roque, e ainda fazem o ajucá — vinho sagrado, iniciático e revelador, extraído da jurema e do jucá (pau-ferro, com que se faz também bordunas)[26]. Eles ainda preservam o ritual do imbu[27] ¾ celebrado sincreticamente com os ritos cristãos. Uma lenda Pankararé diz que o Paraíso fica na cachoeira de Paulo Afonso[28] (a Europa de Colombo também pensava que ficava na América).
"Meu pai me criou
com caça do mato."

As cantadeiras (índias velhas) sabem de coisas. Dão um nó no vestido para amarrar cobra: a serpente não sai mais do lugar, até alguém matá-la. Se a mulher estiver nas regras, basta enguiçá-la (dar um passo por cima): a cobra morre. Vacina Pankararé contra picada: engolir o coração da víbora. Mas o Raso tem poucas cobras. Elas proliferam onde há roças de grãos para alimentar o rato europeu (a América pré-colombiana não tinha ratos). A cultura intensiva de grãos, além de alimentar os ratos, destruiu os inimigos naturais das serpentes: a seriema, o gavião, o teiú. Esse lagarto também sabe de coisas: quando picado, morde a raiz da cabeça-de-negro. O índios criavam a cobra-preta (muçurana) dentro de casa. Ela é ofiófaga: come as outras cobras. Muçurana é manhosa. As cantadeiras dizem que ela gosta de leite humano: bota a ponta da cauda na boca do menino, enquanto mama na mãe sonolenta.

Os Pankararés plantam milho, feijão e raízes no baixio de seu formidável cañon. Criam cabras e ovelhas, e se casam cedo. Helena, 21, tem cinco filhos. Casou-se aos 14, com um menino de 12. "Por isso, passei dois anos sem ganhar nenen." A diferença de idade entre o guia Antônio e seu pai, Hercílio Pajé, é de 12 anos. "Pai me criou com caça do mato", conta, orgulhoso, o filho do feiticeiro (praiá[29], em bom pankararé).


Fonte da força

Josué de Castro explica porque o sertanejo mereceu o famoso epíteto de Euclides da Cunha: "...antes de tudo, um forte[30]". Em Geografia da Fome, o notável nutricionista mostra como a dieta do sertanejo nordestino é, "talvez, a mais racional e equilibrada do país, incluindo as zonas isentas de fome[31]". O sertanejo tem uma alimentação sólida,

porém bem equilibrada, a qual constitui um bom exemplo de como pode um grupo humano retirar de um meio pobre recursos adequados às necessidades básicas da vida[32].

Castro refere a observação de Orlando Parahim, de que seja "a riqueza da luz solar do nordeste capaz de provocar sínteses inéditas de vitaminas[33]." Na Geografia da Fome, "as águas sertanejas são, em geral, de alto grau de dureza, águas calcárias que ajudam no abastecimento em cálcio[34]." E a fome só se apresenta

"episodicamente em surtos epidêmicos. Surtos agudos de fome que surgem com as secas, intercaladas ciclicamente com os períodos de relativa abundância que caracterizam a vida do sertanejo nas épocas de normalidade"[35].

Já o economista Celso Furtado, ele próprio um natural do Semi-Árido Irregular, observa que

"as condições de trabalho e alimentação na pecuária eram tais que propiciavam um forte crescimento vegetativo de sua própria força de trabalho".[36]

Salvo melhor juízo, deve ter sido Khaldûn o primeiro a comparar e comentar os efeitos da super e da subalimentação:

"(...) os homens acostumados a viverem na riqueza e entregues aos prazeres são os primeiros a sucumbir à morte que os anos de seca trazem com as privações. (...) A seca e a penúria não fazem mal a estes como àqueles, que vivem na opulência (...). Os que, pois, morrem vitimados pela seca e pela penúria, perecem menos em conseqüência de uma fome atual do que por efeito desta abundância a que se tinham anteriormente acostumado. (...) Convém saber que a fome é, de toda maneira, mais favorável ao homem de que uma superalimentação, conquanto possa ele acostumar-se à abstinência e contentar-se com pouca comida"[37].

Sem trocadilho, pode-se dizer que o regime de parceria (onde se enquadra a vaqueirice) é a causa principal do regime alimentar do sertanejo e da força que tanto impressionou Euclides[38]. O guia Antônio Pankararé (1,60 m de altura, 88 kg de músculos) explica como planta na terra dos outros (fora do Raso): "tudo o que eu plantar e colher é meu; o dono só quer a terra limpa para semear capim." É como se o trabalhador fosse um sócio com desfrute absoluto dos lucros, dispensado até dos impostos. Por isso são raros os conflitos sociais no Sertão.

O povo é forte, mas também adoece[39]: João Caboclo, 64, do aldeamento do Chico, caçava onças à cacete. Há cinco anos está sem andar. O índio diz que suas pernas ficaram entrevadas de tanto correr atrás de onça, descalço, sem cavalo nem cachorro.

Avena, aventura

A estepe e a noite se deitaram juntas,
paralelas as asas sobre as asas.
Jorge de Lima[40]

À noite, o céu também acende suas flores. Alvas e limpas flores de prata, como as lava-pratos da mata. Longe das luzes da rua, as flores tímidas do céu saem de suas moitas escuras. As flores do céu não têm as cores das flores do mato, as flores douradas e multicores dos espinhos. Mas são tantas quanto suas humildes rivais do rés do chão. Quando o vento frio do Raso vem amolar os espinhos, traz o relento das florinhas do céu para aguar as estrelinhas do mato. As florezinhas do céu florescem mais no verão, suas pétalas rebrilhando, molhadas, na seca. É nelas que saciam sua sede os avôzinhos.

Antônio Pankararé, filho de Hercílio Pajé, já viu avôzinhos. Eles vinham encourados, à cavalo, e passaram bem junto de Antônio, que cavava um tatu. Sua mulher, que estava ao lado, não viu ninguém. Antônio mostrou-os à mulher; os avôzinhos não gostaram, lhe deram uma surra de cansanção. O índio chegou em casa com as costas em fogo.

Quando alguém pergunta ao Pajé pelos avôzinhos, seu rosto iluminado não diz mais nada.

Uma avena vela o sonho das corezinhas. É Pixinguinha descendo a serra, carinhoso, no sopro e nas mãos de Alba: o fotógrafo Antônio Augusto conduz sua luz. Bach tem muitos minuetos, Alba avena o de número 20. Kuhlau foi o mestre de Beethoven; seu sopro atravessa o tempo até o espaço do Raso, no Duo para Flauta e para os lábios avenados.

Esse silêncio do Raso, tão profundo, vem da platéia atenta de avôzinhos.

Bom deserto

Utilizamos dois jipes: um Ford equipado com diferenciais bloqueados, pneus militares 700/16 protegidos com preventivo antifuros Tirol (mais dois suportes), e um Niva, com tração permanente nas quatro rodas. É imprudência adentrar o Raso com apenas um veículo. Há riscos de encalhamento, de acidentes e de panes[41].
O Niva (colocado à nossa disposição pela delegacia local do Ibama) estava sem a alavanca de bloqueio do diferencial central. Atolou na saída para Brejo do Bugre; no Baixio do Araticum patinhou uma roda, e as outras três ficaram inermes. É o efeito perverso do diferencial central, que permite a tração permanente mas pode desligar um dos eixos. Importante: para se obter tração integral é preciso bloquear todos os diferenciais. Se apenas o diferencial central for bloqueado, as transmissões ficarão com rotação igual ¾ mas não as rodas, que ainda estarão sujeitas à "diferença" de rotação administrada pelo diferencial respectivo. Em lugares como o Raso, faz muita diferença.

Leve mapas (o Exército tem quatro[42], bem detalhados; o Radambrasil tem sete[43]). Leve bússola, aguada, alimentos, medicamentos, combustível, guincho, ferramentas, facões, fogões, lanternas, barracas, agasalhos etc. O Raso tem dias quentes e noites frias, como todo bom deserto. Na volta, deixe parte de sua bagagem com os índios. São muito pobres.

A aguada e a munição de boca devem ser bastantes para uma demora maior que a prevista, pois nunca se sabe quando se vai sair das profundas do Raso. Um rádio PX não será demais. É indispensável um guia nativo, como o eficiente Antônio Pankararé (mora no km 18 da BR-110, Jeremoabo Paulo Afonso). Perder-se no Raso da Catarina tem sido fatal para muitos aventureiros.

Os jipes retornam menos carregados; mas os olhos, os corações e a mente voltam repletos da forte paisagem e sua forma de vida. "Nunca mais se é o mesmo quando se vem ao Raso da Catarina" — afirma Antônio Augusto, o Zorba. Ele, que fotografa a região há 10 anos, já revela os mistérios da terra tão bem como um guia da caatinga: em cores, como as estrelinhas da mata, ou em preto e branco, como as florezinhas do céu.

Faça as malas

O acesso ao Raso da Catarina só é possível com veículos de tração nas quatro rodas. O motocross não é recomendável, por conta dos espinhos que invadem as trilhas. O Centro de Turismo e a Associação de Guias de Paulo Afonso organizam excursões ao Raso. Há vários ônibus diários para Recife e Salvador. Quem quiser ir no seu jipe, pode Sair de Salvador pela BR-110 até Jeremoabo. São 400 km de asfalto ruim. Jeremoabo, 40 mil habitantes, é a cidade periférica do Raso mais próxima do litoral.

Segundo a imprensa local, as estradas do Sertão de Pernambuco estão infestadas de cangaceiros. Evite viagens noturnas: as estradas do oeste de Alagoas, de Sergipe e do Norte da Bahia não oferecem muita segurança. Mas o Raso é tranqüilo.

A ilha fluvial de Paulo Afonso é uma boa opção como base para quem vai ao Raso. Tem 90 mil habitantes e uma infra-estrutura razoável. O Centro Turístico promove passeios de lancha nas represas de Paulo Afonso e Xingó, enquanto não forem privatizadas.

[1]Cunha, E., Os Sertões, S. Paulo, op. cit., 1994, p. 45.
[2]“(...) Silva aestu aphylla, quam dictunt caa-tinga, in provinciæ bahiensis deserto australi.” Martius, C., Flora Brasiliensis, Weinheim, Cramer, et New York, Wheldon & Wesley, 1965; 15. vol., volumen I, pars I, pp. XXX-XXXI.
[3]Lisboa, A., O Problema das Seccas, conferência de 28-8-1913, in Memoria da Seca, op. cit., p. 126.
[4]Cunha, E., op. cit., p. 43.
[5]Carrasco: palavra que define os terrenos secos e pedregosos, em Portugal e no Nordeste Brasileiro. O termo que denomina o executor dos condenados à morte é originário do patronímico do meirinho Belchior Nunes Carrasco, que no século XVII era verdugo em Lisboa. Q. V. Aulete, Aurélio e Michaelis.
[6]Duque, J. G., O Nordeste e as Lavouras Xerófilas, Mossoró, op. cit., p. 169.
[7]Cf. Bandeira, F., Um Estudo em Perspectiva: Etnopedologia e Etno-ecogeografia do Grupo Indígena Pankararé, Cadernos de Geociências, Salvador, UFBA, Inst. de Geociências, nov. 1996, p. 121 e outras.
[8]Ministério das Minas e Energia, Projeto Radambrasil, Levantamento de Recursos Naturais, Vol. 30, Rio, 1983, 1a ed., 1a impr., p. 625.
[9]“Unde jam gens Tupinambares silvas illas nome Caa-tinga, i. e. collucaturum appelavit, quæ vox a Brasilianis corrupta dicitur est scribitur Catinga. Altera hujus aridæ vegetationis forma nominatur a Brasilianis Carrasco, virgulta, vel Mato carrasquento, silva horrida.” Martius, op. cit., volumen I, pars I, pp. XXX-XXXI.
[10]Alighieri, D., Commedia, Inferno, Canto I, 5, Milano, Mursia, 3ª ed., 1965, p. 27: Ah quanto a dir qual era è cosa dura / esta selva selvaggia e aspra e forte / che nel pensier rinnova la paura!
[11]Cf. Benchetrit, Cabot & Dastès, Géographie Zonale des Régions Chaudes, Paris, Nathan, 1971, p. 132.
[12]Tavares, S. et alii, Estudos do Paleoclima da Região Semi-Árida do Nordeste Brasileiro - Centro Técnico Aeroespacial — Ministério da Aeronáutica — S. José dos Campos - 1987, p. 21.
[13]Ministério do Exército, Diretoria de Serviço Geográfico, Brasília, 1985, 1a ed., 1a impr., Folha de Santa Brígida, (SC. 24—X—C—V, NI-1595).
[14]Segundo Bismark Martins de Oliveira, Azulão entrou no cangaço porque violentara uma das irmãs e temia a punição do pai. Facínoras que violentavam as próprias irmãs, pior faziam com as moças e mulheres que encontravam em seu caminho. ——, O Cangaceirismo no Nordeste, Brasília, Senado Federal, 1988, p. 121.
[15]O escritor Ariano Suassuna, em sua casa na fazenda Carnaúbas, sobre Os Sertões: “a obra atingiu a altura do tema”.
[16]Cf. Martius: “(...) verum tamen est, quo adijiciamus, Sertaô, locum desertum, apud Brasilianos non dici de aliqua harum vegetationis formarum, sed de loco incolis vacuo, unde potest accidere, ut in iis terræ partibus, quæ pro antiquo more hic illia apellantur Sertaô, diversissimas deprehendas vegetationis formas, silvas, campos, catingas, virgulta, charnecas.” —, op. cit., volumen I, pars I, pp. XXX-XXXI.
[17]Cf. Pinto, Estevão, Muxarabis & Balcões, S. Paulo, Ed. Nacional, Brasiliana, Vol. 303, 1958, pp. 43-44.
[18]Spix & Martius, Viagem pelo Brasil, S. Paulo, Melhoramentos, 1976, p. 190; ——, Através da Bahia (excertos de Viagem pelo Brasil), S. Paulo, Ed. Nacional, Brasiliana, 1938, série 5ª, vol. 118, p. 253.
[19]Ministério das Minas e Energia, op. cit., p. 428.
[20]Duque, J. G., Solo e Água no Polígono das Secas, Fortaleza, op. cit., pp. 86/87.
[21]Cf. Domingues, O., A Cabra na Paisagem do Nordeste, op. cit., p. 53.
[22]Cf. Porto, A., Tradição Crioula, Revista Globo Rural, São Paulo, Ed. Globo, n.º 130, agosto 1996, pp. 32-37.
[23]A vaqueirice é uma relação de trabalho que remonta aos tempos da colonização. Martius registrou o fato, já praticado nas fazendas da Coroa no Piauí: “O ordenado desses vaqueiros, que às vezes servem durante anos, sem remuneração até receberem paga, consiste na quarta parte de todos os bois e cavalos criados anualmente na fazenda. Além disso, têm morada grátis, direito aos produtos da criação de porcos, cabras e carneiros, e à produção de manteiga e queijos (...). —— Viagem pelo Brasil, op. cit., p. 215.
Celso Furtado também aborda a vaqueirice, rapidamente, na Formação Econômica do Brasil, cit., p. 64.
[24]Cf. Pinto, E., op. cit., p. 35.
[25]Cf.——, cit., p. 37.
[26]Cf.——, cit., pp. 36/39/41/42.
[27]Cf.——, cit., pp. 39-41.
[28]Cf.——, cit., pp. 36/46/50.
[29]Cf.——, op. cit., pp. 37 e outras; Meader, R., Índios do Nordeste, Brasília, Summer Institute of Linguistics, 1978, p. 43.
[30]Cunha, E., op. cit., p. 95.
[31]Castro, J., Geografia da Fome, op. cit., p.160.
[32]——, cit., pp. 173/174.
[33]——, cit., p. 187.
[34]——, cit., p. 187
[35]——, Nordeste, cit., p. 159.
[36]Furtado, C., Formação Econômica do Brasil, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1968, p. 67.
[37]Khaldûn, op,. cit., tomo primeiro, Quinto Discurso Preliminar, pp. 139-140-142; ——, The Muqaddimah, vol. one, Fifth Prefatory Discussion, pp. 180/182: It can also be noted those people who, whether they inhabit the desert or settled areas and cities, live a life of abundance and have all the good things to eat, die more quickly than others when a drought or famine comes upon them. (...) When a drought or a famine strikes them, it does not kill as many of them as the other group of people, and few, if any, die of hunger. (...) It should be known that everybody who is able to suffer hunger or eat only little, is phisically better off if he stays hungry than if he eats too much. ——, Discours sur L’Histoire Universelle — Al Muqaddima, pp. 137/138: (...) ceux qui vivent dans l’abondance et la bonne chère meurent plus vite que les autres de la sécheresse ou de la famine.. (...) tous paient un moins lourd trubut qui d’autres à la sécheresse ou à la famine (...). Ceux qui meurent pendant les famines sont victimes de leur régime alimentaire antérieur de satiété, non de la faim qui les touche pour la première fois. (...) Il faut savoir qui celui qui peut résister à la faim ou manger très peu est en meilleure condition physique s’il rest affamé que s’il mange trop.
[38]A vaqueirice que Euclides encontrou na Bahia era diferente do restante do Sair — se não no espaço, pelo menos no tempo. Àquela época, Segundo Euclides, “o fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios que nunca viu, às vezes. (...) usufruem, parasitàriamente, as rendas das suas terras, sem divisas fixas. Os vaqueiros são-lhes servos submissos.
“Graças a um contrato pelo qual percebem certa percentagem dos produtos, ali ficam, anônimos — nascendo, vivendo e morrendo na mesma quadra de terra (...) e cuidando, a vida inteira, fielmente, dos rebanhos que lhes não pertencem.
“O verdadeiro dono, ausente, conhece-lhes a fidelidade sem par. Não os fiscaliza.” Mas o próprio Euclides reconhece singular relação entre “senhor” e “servo”, no tratamento presente na corespondência: “Subscrevendo as cartas repugna-lhe a forma vulgar: am. e criado; substitui-a ingênuamente por outra: seu amigo vaqueiro F. ——, Os Sertões, Francisco Alves, op. cit., pp. 108/109. Idem, Círculo do Livro, op. cit., pp. 101/102. A substituição da subscrição não se dava “ingênuamente”, como viu a pressa de Euclides; mas conscientemente — da liberdade e da altivez do sertanejo, presente até hoje nas relações de trabalho com o proprietário da terra.
Esse era o procedimento adotado pela Casa da Torre, dona de quase todo o interior da Bahia e de grande parte do Sair de Pernambuco e Paraíba. Mas não era essa a regra no restante do Sair; assim, onde os coronéis? Onde os fazendeiros, tantas vezes acusados de dar coito aos cangaceiros, quando não eram vítimas destes rapineiros? Onde os proprietários rurais do Sair, que tão bravamente lutaram na guerra da independência brasileira — que no Nordeste não foi uma bravata às margens do Ipiranga, mas uma “boa guerra”, ao gosto de Nietzsche.
[39]Assim o Doutor Martius dá seu diagnóstico sobre a longevidade e a decadência dos índios camacãs: “Alcançam os camacãs idade avançada; conheci um deles de cem anos, cujo cabelo estava apenas grisalho, ainda não embranquecido. No convívio dos brancos aumenta a sua mortalidade, e sucumbem principalmente às bexigas ou outras febres agudas.” ——, Viagem pelo Brasil, op. cit., p. 169.
[40]Lima, J., op. cit., p. 764.
[41]No quarto dia, Antonio do Ibama, motorista do Niva, precisou partir. O fotógrafo Antônio Augusto queria ficar. Dispensei o Niva. No retorno, a trilha estava coberta de flores e não vi o que atingiu meu jipe por baixo. Ficou um ruído na transmissão dianteira. Não dividi meu medo com os companheiros. Dirigi só com tração traseira, na trilha estreita, sinuosa e arenosa, em velocidade acima do limite — para não atolar. Cheguei ao Brejo do Bugre — na saída do Raso — tão exausto que me deitei inerme no chão, pensando que ia morrer. Sete meses depois, na mesa da angioplastia, o cirurgião me disse: “Você já teve um enfarte.” Então me lembrei que meu coração ficara na Catarina.
[42]Ministério do Exército, Diretoria de Serviço Geográfico, Brasília, 1985, 1a ed., 1a impr., folhas de Paulo Afonso (SC. 24—X—C—II, NI-1520), Santa Brígida, cit., (SC. 24—X—C—V, NI-1595), Canché (SC. 24—X—C—IV, NI-1594) e Salgado do Melão (SC. 24—X—C—I, NI-1519).
[43]Ministério das Minas e Energia, op. cit., apêndice, Folhas SC. 24-25 Aracaju/Recife.