domingo, 4 de novembro de 2007

Contos do livro "A dança do urubu"


LÍNGUA DE PEBA


— Compadre Elias! Compadre Elias!
— Ô, Zé Floro! Tome chegada e se apeie!
— Tô com pressa, compadre! Ainda vou botar o gado no curral!
— De onde vem assim, tão arrumado, de chapéu de massa!
— Venho da rua e tenho uma boa para lhe contar!
— Diga logo qual é!
— É com o velho Teotônio Carlos!
— Morreu?
— Ainda não!
— E o que foi que houve?
— Deixou de ser inspetor de quarteirão!
— Boa notícia, compadre. E o velho, ainda tá na rua ou já voltou para o sítio
— Ainda tá na rua!
— E quem ficou no lugar dele?
— O sobrinho, Liz Carlos da Laje!
— Aqueles Carlos só querem ser o Fute! Mas foi uma boa que vosmecê me deu. Se apeie, venha tomar um café.
— Fica pra outra vez, compadre Elias. Até Deus querer! Não vá fazer besteira!
— Até Deus querer, compadre Floro!
Era no fim dos oitocentos. Naquela noite Elias quase não jantou. Engoliu umas poucas de angu com leite, tomou café só para fumar. Finalmente sua vez tinha chegado. O velho Teotônio ia desfazer a desfeita que fizera com ele, na vista da família e do povo, no São João de Bom Conselho.
Corrigir Elias da Escorregada na entrada da rua, no meio de tanta gente, e tomar sua pajeuzeira! O velho Teotônio era mesmo abusado como todos aqueles Carlos da Laje, da Caiçara e do Pajeú. Raça de gente metida a besta, uns cabras a querer ser mais homens que os outros.
E ainda mais o velho Teotônio, com uma patente de inspetor de quarteirão! Mas sua autoridade terminara, embora fosse substituído pelo sobrinho, Liz Carlos, outro chato, outro besta.
Elias ruminava tudo isso deitado na cama de varas, olhando a cumeeira da casa, o claro da lua entrando pelas frestas das telhas.
A madrugada chegou com Elias em claro. Levantou-se, espalhou o pelo-sinal, foi tirar o leite das vacas. A mulher tirava o das cabras para dar aos meninos, era mais sadio.
De novo, quase não comeu no café. Refugou o xerém. Só quis a coalhada e o café, para acender o pé-de-burro.
— O que é que tu vai fazer na rua dia de semana, Elias? Te aquieta, homem! — aconselhava a mulher.
Mas Elias não queria conselhos. Foi ao baixio buscar a besta pampa, nem banhou o animal, trouxe-o para casa, passou-lhe a sela. O velho Teotônio ia lhe pagar a desfeita.
Esporeou a besta e saiu no galope em procura da rua.
— Pra onde vai, compadre Elias?
— Vou pra rua.
— Alguma novidade?
— Vou buscar uma encomenda.
Ao longe, avistou a vila. A Matriz do Bom Conselho, onde se batizara e casara, o açude velho, o arruado.
Riscou a besta na primeira bodega da entrada da rua.
— Bons dias, seu Quinca. Bote uma.
— Bons dias, seu Elias. Na rua dia de hoje?
— Vim buscar uma encomenda.
Elias engoliu a lapada, cuspiu, tirou o pé-de-burro apagado de trás da orelha, riscou o isqueiro de pederneira dentro do chapéu. Soltou a baforada.
— Bote outra, seu Quinca.
— Tem sinal de chuva na Escorregada?
— O sinal é ruim. A jurema preta florou.
— Afe, seu Elias. Será que vamos ter Seca?
— A jurema preta florando é na certa. Bote mais outra, seu Quinca. E o novo inspetor?
— É Liz Carlos, autoritário como o tio. Mas bota ordem na vila, como o velho Teotônio botava.
Elias não gostou da resposta. Não achou que tomar sua faca fosse botar ordem, nem numa noite de São João. Pagou as três lapadas e saiu na besta, no giro da casa do velho Teotônio Carlos, a cachaça botando mais fogo na fogueira do seu peito. Ele, um homem de moral, ser desarmado pelo velho Teotônio Carlos, um inspetor de quarteirão metido a besta.
Enfim chegou à casa do velho. Apeou-se e botou a cara na porta:
— Seu Teotônio?
O velho saiu lá de dentro:
— O que deseja?
— Tá me conhecendo, seu Teotônio? Sou Elias da Escorregada. O senhor tomou uma faca minha numa noite de São João.
— Tou lembrado.
— Agora vim buscar.
— Vosmecê conhece a faca?
— Conheço, sim senhor.
— Então entre e espere aqui na sala.
Teotônio Carlos entrou no quarto das selas, pegou um surrão velho e trouxe-o para a sala. Abriu a boca do saco de couro e despejou uma grosa de facas no chão. Eram facas de toda qualidade: pajeuzeiras largas, pajeuzeiras finas, tipo línguas-de-pebas, quicés, trinchetes, punhais abaulados, com um risco ao longo da lâmina, punhais de três quinas, facas guiadas, facas de dois gumes.
— Qual é a sua faca?
— É aquela ali!
O velho Teotônio pegou no cabo da faca, arrastou a lâmina já colada no couro. Pisou na lâmina fina e puxou o cabo para cima, quebrando a medonha pajeuzeira língua-de-peba, uma lâmina de doze polegadas de comprimento por menos de uma de largura, terminando numa ponta de espada, mais fina que ponta de chifre de veado. Faca de cabra mal-intencionado.
O velho encarou o bafo dos olhos espantados de Elias:
— Como autoridade, tomei; como homem, quebrei. Agora, cabra, vamos pegar duas facas dessas para ver as tripas um do outro!
Elias engoliu o ressaibo do sabor da cana e saiu sem tinir as esporas, a língua na bainha, a faca e a alma partidas.
Um dia, Teotônio Carlos lhe pagaria o novo e o velho.


O VELHO DA LAJE


O velho Luiz Carlos de Andrade morava no sítio Laje, situado numa extrema do Sertão de Pernambuco com a Paraíba, entre os antigos termos de Triunfo e de Princesa, nas quebradas da Serra da Baixa Verde, a 70 léguas do mar.
O sítio tem seu nome por conta do afloramento de um grande lajedo de granito que atravessa a estrada que liga os dois municípios sertanejos. No centro do lajedo, à beira da estrada, repousa uma grande pedra que, percutida, ressoa um dobre naquelas quebradas. Por essa característica, é conhecida como Pedra do Sino.
A voz do velho Luiz Carlos também se fazia ouvir e respeitar na região. Era tido como o homem mais valente do termo de Princesa. Ser tido como bravo entre bravos é motivo bastante para admiração e respeito.
Esse foi o motivo que fez o Coronel e deputado Marcolino Pereira Lima, casado como Dona Águida Carlos de Andrade, nomear Luiz Carlos, sobrinho de sua mulher, como delegado de Princesa, em substituição a Teotônio Carlos, seu cunhado e homem destemido, como eram afamados os Carlos da Laje. Luiz era um homem alto, esguio, desbarrigado, de ombros largos, cabelos crespos e ruivos, olhos claros.
Mas o tempo passa. O termo de Princesa se fez independente de Piancó, em 1925, enquanto Triunfo se emancipava de Flores do Pajeú. E, se a coragem Luiz Carlos continuava a mesma, as juntas, a energia, a vista já não eram as de sempre. O velho foi substituído nas suas funções pelo seu sobrinho Manoel Carlos de Andrade, herdeiro de seu temperamento. Sobrinho na lei antiga, pois a mãe de Manoel, Antônia Carlos, mulher de coragem, era prima legítima de Luiz Carlos.
O velho recolhera-se à calma de seu sítio e não vinha mais à feira. Mandava os filhos rapazes, todos os sábados, levar os produtos da terra para vendê-los em Princesa, e comprar os gêneros que se fizessem necessários à vida lenta da Laje.
— Pai deixa eu tirar a barba?
— Pode tirar, meu filho.
Às vezes, era necessário comprar alguma peça de flandre, e os filhos do velho Luiz Carlos procuravam a tenda de Marçal Flandreleiro, há poucos passos do pátio da feira, no beco do Silo, paralelo à Rua Grande, a principal de Princesa, do lado da serra dos Patos.
Marçal era artesão habilidoso, e mais hábil ainda em inventar causos para o entretenimento do povo, que freqüentava sua tenda para ouvir suas histórias ritmadas pela batida do martelo. Sua tenda era um ponto referencial de Princesa, onde nunca faltavam desocupados e curiosos em busca de uma boa gargalhada às custas da vida alheia.
Um sábado os filhos do velho Luiz Carlos ouviram uma história que circulava na feira, justo com seu pai:
— “O velho Liz Carlos da Laje estava ajudando na cozinha, moendo milho, quando a mulher mandou-o buscar lenha. O velho pegou a foice e saiu de casa, em procura da caatinga. Quando chegou numa capoeira de marmeleiro ouviu o espirro de uma onça. O velho Liz Carlos rodou a foice e abriu um aceiro de quatro braças, do medo que teve. Ele tinha acabado de comer 19 pamonhas; cagou 20, a derradeira ainda vinha com os amarradios.”
— Marmeleiro é lenha que dá o fogo mais quente e não deixa cinza para entupir o fogão ou a caieira. Quiçabe, por isso, o velho tinha ido cortar marmeleiro, para agradar a mulher. Ou para não ter, ele mesmo, que desentupir o fogão!
Era a repercussão da pilhéria que se ouvia na feira da farinha, no corte da carne, junto aos vendedores de rapadura, nas bodegas onde se reuniam os pingurços, em todos os quadrantes da feira..
Os filhos do velho Luiz Carlos ouviram encabulados a chacota que se contava com o seu pai e não tiveram dificuldade em saber a origem da pilhéria: a tenda de Marçal. Ainda quiseram tomar satisfação com o flandreleiro falador, mas decidiram deixar a solução do caso para o arbítrio do pai.
Fim da tarde, botaram a feira na cangalha do burro, passaram a perna nas selas dos cavalos e voltaram para casa. Chegaram cabisbaixos, silenciosos, sem apressa eufórica de sempre, em dar as novas para os que ficaram no ramerrão da Laje.
— Como foi a feira, meus filhos? — perguntou o velho Luiz Carlos.
— Como foi a feira? — insistiu o ancião, ante o silêncio embaraçoso dos rapazes.
— A feira não foi boa não, pai — respondeu, a meia-voz, o mais velho.
— Não foi boa por quê?
— Por causa de uma que está circulando com pai — conseguiu desabafar o rapaz embaraçado.
— Que uma é essa, meu filho?
— Que pai tava na ajudando na cozinha...
— Ajudando na cozinha? Eu nunca fui homem de ajudar na cozinha! A história já começou ruim! E o que mais?
— Moendo milho...
— Moendo milho? Essa é a maior desmoralização que um marido mandado pode sofrer da mulher! Eu nunca moí milho1 Nem quando sua mãe ficava prenhe! E o que mais?
— Que mãe mandou pai ver lenha.
— Sua mãe nunca me mandou nada na vida! Que história mais atrevida é essa! E o que mais?
— Diz que pai saiu com a foice no ombro e quando chegou no mato ouviu o espirro de uma onça. Diz que pai rodou a foice e abriu um aceiro de quatro braças, do medo que teve.
— E que mais? — perguntou, rubro, o velho ruivo.
— Diz que pai tinha acabado de comer 19 pamonhas...
— Dezenove pamonhas?
— Sim, pai.
— E o que mais?
— Diz que pai... com licença da palavra... cagou 20 pamonhas... e a derradeira ainda vinha com os amarradios!
— Onde vocês ouviram esse desaforo?
— Na farinha, pai, na carne verde, nas rapaduras, nas bancas de pano, nas bancas de alpercatas, na feira de gado e de animais, nas bodegas... em todos os cantos. Quando o povo via a gente começava a se rir e a falar baixinho...
— E quem foi o filho da mãe que inventou essa história?
— Diz que foi Marçal Flandreleiro. Nós ainda quisemos ir na tenda dele, mas deixamos primeiro pra conversar com pai.
— Fizeram bem-feito. Sábado, quem vai fazer a feira sou eu — resmungou o patriarca da Laje e ex-delegado de Princesa. E vou só. Não quero botar vocês em precipício.
— A gente vai com o senhor, pai.
— Nada disso. Eu já sou velho e não tenho nada a perder. Tanto posso ir para a cadeia como para o cemitério, sem prejuízo. Já lucrei o que tinha de lucrar. Marçal vai ver que o velho Liz Carlos ainda é um homem.
O velho passou a semana amolando a pajeuzeira na pedra, dos dois lados, esperando o dia da feira e da forra. Não comia, enturrado. Não dormia, amuado. Só pensava na feira do sábado.
Enfim, chegou o dia. Madrugou mais cedo que o costume, lavou os dentes com raspa de juazeiro, mandou os filhos pegarem os burros e o cavalo melado. Ficou ordenhando as mansas vacas caracus, puxando as tetas em xis, a cauda e o bezerro amarrados na perna, vacas boas de leite e de carne macia, catingueiras, que não sofriam muito no estio. Raça que veio do reino com os marinheiros.
No chiqueiro havia uns chibarros erados no ponto de corte, que pretendia levar para a feira de gado. Alguns eram bodes moxotós, brancos, a listra preta ao longo do lombo. Raça boa de leite e corte, sadia, dava cabras de garrafa e meia. Também tinham vindo do reino com os marinheiros, há muitos séculos, não sentiam mais a Seca. Mas o velho queria ir só para a feira, não ia levar nenhum dos rapazes para tanger as criações.
Os rapazes deram banho nos animais, botaram um bornal de milho no focinho de cada um, passaram as cangalhas, as cilhas apertadas para a carga não virar, carregaram os burros com sacas de milho e de feijão. Por fim, arrearam o cavalo melado-baio de crinas, cauda e canos pretos, de cascos altos e duros. Um legítimo crioulo nordestino, manteúdo, bom de passada e de campo.
O velho vestiu a calça e a camisa de mescla azul, comeu coalhada escorrida, xerém com leite, tomou uma xícara de café torrado com rapadura. Calçou as reiúnas e as esporas, botou na corona uma rede, uma coberta e um pequeno rifle de seis tiros, farinha, feijão, xerém e jabá, como se fosse fazer uma grande viagem.
Depois, enfiou a pajeuzeira na cintura, a parabellum do outro lado, pendurou no ombro largo o bornal com munição, um queijo de coalho, duas rapaduras, fumo de rolo, palha de milho, o fuzil, a pedra-de-fogo e o algodão queimado para fazer e acender o cigarro, o corrimboque de rapé, e amarrou uma cabaça d’água, tampada com um sabugo de milho, numa argola da sela.
Estava pronto para ir longe, além de Princesa, caso precisasse arribar. Botou um raminho de alecrim no bolso da camisa para fazer uma viagem saudável e se despediu lacônico:
— Até mais ver.
— A Deus querer, pai!
— Volta em paz, homem de Deus! Vou preparar um capão na cabidela para tua volta!
Um dos rapazes correu para abrir a cancela, outro segurou a rédea e o estribo. O velho pegou um tufo da crina do melado, passou a perna na sela, ralhou com a burra-madrinha, estalou o relho e a tropa saiu rumo a Princesa, Luiz Carlos no coice, pronto para aprumar uma carga enclinada, a burra-madrinha na frente com seu guizos, puxando os outros animais, que lhe seguiam em fila indiana.
O cavaleiro deu um ligeiro toque na rédea, fez boquinha e botou o cavalo na passada, sem usar as esporas ociosas e saiu mascando fumo. O melado foi no baixo até Princesa, era um cavalo de sela. A velha ficou rezando, as moças chorando. Os rapazes prometiam vingança caso o pai morresse. A desgraça era iminente.
Como o velho saíra mais cedo, quase não encontrou ninguém no caminho. Apressado, estalava o relho e passou por uns poucos madrugadores:
— Bons dias, compadre Zuza!
— Bons dias, compadre Liz Carlos! Nunca mais tinha ido à feira! Vai cedo e apressado! Cadê os meninos? — perguntou, apreensivo, o velho Zuza, sabedor do boato que circulara na última feira de Princesa.
— Os meninos ficaram no sítio, cuidando do serviço. Eu vou ver a cara da rua.
E estalou o relho, açulando a tropa.
Seu Luiz Carlos passou pela Pedra do Sino, pelo açude do Maia, pelo oitão da casa do Major Manuel Carlos, na entrada da rua, e entrou em Princesa, tomando o rumo da Matriz e da feira. O pátio ainda estava quase vazio, com os primeiros feirantes desembarcando suas mercadorias.
O matuto estalou o relho, a burra-de-frente evoluiu no pátio seguida pela tropa como um grupo de infantaria. A dois estalos do relho a burra esbarrou, a tropa fez alto. Três estalos quebraram e os burros saíram da fila indiana para ficar cada um ao lado do outro, à direita da madrinha, em perfeita formação.
Os feirantes olhavam com atenção o pequeno espetáculo do velho e seus burros.
O velho dispensou ajuda, arriou a carga sozinho. Dispôs as sacas no pátio da feira, conduziu os animais até um pé de fícus, amarrou os cabrestos. Depois, tomou o giro da tenda de Marçal. Cuspiu e entrou.
Dia de feira o flandreleiro abria cedo a pequena tenda. Mesmo àquela hora, já havia alguns fregueses de Marçal, a platéia de braços cruzados por causa do frio, esperando o fogo e as pilhérias do flandreleiro esquentarem. Quando o velho chegou arrastando as esporas, a pequena platéia recuou.
— Bons dias! — exclamou o velho Carlos, estancando no meio da tenda.
Todos sabiam da pilhéria de Marçal, todos conheciam o temperamento do velho Luiz Carlos, e ninguém quis ficar para testemunha. Todos saíram apressados, sem sequer responder às horas ao velho. Só ficaram Marçal e seu urubu de estimação, acomodado num poleiro de papagaio.
— Bons dias, seu Liz Carlos! Que é que um rico vem fazer em casa de pobre, sem ser ano de eleição? — comentou Marçal, tentando se recuperar do susto.
— Marçal, eu vim saber de uma que rodou na feira sábado derradeiro!
— Que uma, seu Liz Carlos? — disse o flandreleiro, fazendo-se de inocente.
— Uma que eu estava ajudando na cozinha — como se eu fosse homem de cozinha —, moendo milho — como se eu fosse macho de moer milho, — quando a mulher me mandou ver lenha — como se eu fosse homem de ser mandado por mulher!
O velho tomou fôlego e pegou no cabo na pajeuzeira.
— E que, numa capoeira de marmeleiro, eu ouvi o espirro de uma onça! E abri um aceiro de quatro braças, do medo que tive! Como se eu fosse homem de ter medo de alguma coisa, muito menos de onça, pois já cacei muitas delas de zagaia! E que eu tinha comido 19 pamonhas e caguei 20, a derradeira ainda com os amarradios!
Marçal parou de bater o martelo no flandre, encarou cinicamente o velho Carlos, e disse, fingindo surpresa e para ganhar tempo::
— Conte de novo, seu Liz Carlos!
O velho levantou o tom da voz:
Vosmecê sabe que na derradeira feira rodou uma comigo e tão dizendo que saiu daqui, de sua tenda! Uma que eu estava ajudando na cozinha — repare que eu não sou homem de cozinha, Marçal! E moendo milho! Como se eu fosse um corno e moesse milho! E que a mulher me mandou ver lenha! Como se a mulher já tivesse me mandado alguma vez na vida fazer qualquer mandado! E eu cheguei numa capoiera e ouvi o espirro de uma onça! E o medo foi tão grande que rodei a foice e abri um aceiro de quatro braças! Se tivesse uma onça na capoeira, Marçal, e eu tivesse com uma foice, tinha trazido o couro dela para esfregar na tua venta e apurar na feira! E que eu tinha comido 19 pamonhas e cagado 20, como se eu fosse um cagão como tu, e que a derradeira ainda vinha com os amarradios! Sustenta, Marçal, se tu for homem!
— Seu Liz Carlos — disse Marçal, em voz lenta e baixa —, eu não sou homem de uma nem duas, muito menos de contar uma dessas com um homem de respeito e valente como o senhor! Eu já ouvi uma parecida com essa, mas que um soldado estava contando no pátio da feira de Triunfo, debaixo da gameleira, e que se passou no Navio!
— Ô, Marçal! Eu queria que tu fosse um homem, Marçal! Eu queria que tu sustentasse essa, pra eu enfiar essa faca até o cabo no teu umbigo, pra esse urubu teu pareceiro comer tuas tripas! — dizia o velho da Laje, pegado no cabo da pajeuzeira, mas sem puxá-la, porque não era hora, e para não “cortar a bainha”.
— Eu te capo, Marçal! Eu arranco esses teus olhos cínicos na ponta da faca! Eu corto tua língua de cobra! Fala como homem uma vez na vida, e assume a lhéria que o teu atrevimento inventou!
— Eu não sou doido, seu Liz Carlos, nem de pensar numa dessas com um homem de respeito e disposto como o senhor! Pela luz dos olhos dos meus filhos, pode acreditar, seu Marçal, que de minha boca nem dessa tenda saiu essa!
— Eu não quero mais ouvir essa conversa, Marçal! Se essa lhéria continuar a rodar na feira, pode encomendar seu caixão!
E saiu, arrastando as iradas esporas. Tirou o cornimboque do bornal e cheirou duas pitadas de rapé, uma em cada venta, para espalhar o sangue.
Quando o velho voltou para o pátio da feira, todos lhe curvando a cabeça, respeitosos, a platéia retornou à tenda, para ver se Marçal era vivo.
— Como foi, Marçal, que tu saísse dessa?
— O velho me prometeu uma novilha enxertada pra eu não falar mais nesse assunto. Trato é trato!
E o flandreleiro continuou a bater seu martelo.


LÓGICA MAIOR

Manuel Carlos de Andrade Lima passou toda a adolescência no Seminário Arquidiocesano da Paraíba. Demorou mais tempo que os outros três irmãos homens, que todos fizeram humanidades estudando para padre. Quem diria que aqueles quatro Carlos de Andrade — raça famigerada do Pajeú — sentiriam, um dia que fosse, a vocação religiosa?
José deixou o Seminário, ainda moço, para começar o curso de Ciências Jurídicas, no Recife, abandonando a faculdade quando morreu-lhe o pai, o Coronel Marcolino Pereira Lima. O irmão José Pereira Lima assumiu a herança política do paI, deputado à Assembléia Estadual, embora fosse o terceiro dos filhos homens. Os outros dois, Marcolino Filho e Antônio, abandonaram o Seminário para se dedicar aos negócios e às coisas mundanas. Lino, mais às coisas mundanas.
Só Manuel, o Neco, concluiu o curso de padre. Ao fim dos estudos, foi aguardar na casa paterna, o chamamento do bispo para a ordenação. Das 76 léguas que separavam Princesa da Capital, apenas 11 eram percorridas a trem, até Tabaiana, no começo da caatinga, onde um portador, o velho Simôa, o esperava com três animais, dois selados e outro com a cangalha para a bagagem.
As outras 65 léguas eram transpostos em lombo de cavalo, o guarda-pó cobrindo a batina preta, a batina por cima da calça, da ceroula, da camisa e da camiseta, o colarinho eclesiástico enrijecendo o pescoço, o chapéu preto como amparo do sol, em procura da serra da Borborema, cortando o agreste, passando por Campina, atravessando todo o Cariri, as caatingas de Soledade e Joazeirinho, cozinhando o macássar sobre as trempes de pedras, dormindo na rede armada sob os paus.
O Cariri mais seco ainda nos torrões de dezembro, mas de noites frias como facas. Manuel desceu a serra da Viração até o calor do caldeirão de Patos, subiu a serra do Teixeira para o clima ameno do encontro e do repouso com os amigos Dantas, afetos de família.
Depois, era continuar a cavalgada no lombo da serra, o clima suave: bordejar o pico do Jabre, ainda em Teixeira, que disputa a condição de mais alto da Paraíba com o pico do Pau Ferrado, na sua Princesa; passar pelas póvoa de Maturéia, pedir arrancho em Imaculada, de novo arranchar-se no povoado de Água Branca, dormir na fazenda de seu pai, no Juru, visitar a parentela no reduto de Tavares, rever os primos em Lagoa de Cruz e, finalmente, a entrada triunfal em Princesa, o futuro padre sendo saldado por todos do alto do seu cavalo, como um redentor, filho do Coronel Marcolino.
Mas no período em que esperava o vocacionamento do bispo, em contato com a família, matando a saudade dos parentes deixados pela vocação ao serviço de Deus, exorcizando o recalque deixado pela disciplina estóica do Seminário, Manuel apaixonou-se por uma prima, Antônia Carlos, no que foi romanticamente correspondido.
Eram manhãs de romãs e de pinhas que chegaram em pós as primeiras trovoadas, eram tardes de bolos de goma e doces de leite em massa, tijolos e cortados; eram crepúsculos de leves e claros suspiros, noite de sequilhos com chás de folhas de laranjeira, carinhos na tonsura ainda aberta, mãos dadas à vista de todos, madrugadas de sonhos, perguntas ao rangido do armador ao balanço da rede:
A disciplina do Seminário era ainda mais rígida que o estilo da família e os costumes do Sertão, a batina era mais dura e mais quente que o gibão. E o amor da prima era mais quente, mais próximo, mais tangível que a devoção à Virgem do Bom Conselho e o abstrato amor a Deus.
Aos domingos ajudava a missa na igreja de Nossa Senhora do Bom Conselho, o antigo templo barroco que ficava como uma cunha no encontro da Rua Grande com a Rua Nova, a cruz da torre tentando alcançar o poente para converter o Sol.
Os amigos e os parentes comentavam:
— Toinha vai tirar a batina do primo padre!
Para os pais dos primos o casamento era de gosto. Manuel Carlos era homem sério, sem vícios, corajoso, trabalhador, temente a Deus e de muita leitura. O cheiro-de-queijo levou ao namoro e ao noivado com a prima legítima, filha do Major Feliciano Florêncio de Medeiros, considerado o homem mais rico de Princesa, e de Joaquina Carlos de Andrade, filha do velho Manuel Carlos de Andrade, um dos senhores da ribeira do Pajeú. Joaquina era irmã de Águida, mãe de Manuel Carlos.
O padre-em-ser, agora noivo, fez a longa viagem de volta ao Seminário para dar baixa oficial de sua desistência, justificar-se perante o bispo e apanhar o resto da bagagem, principalmente os livros, que eram muitos.
Um colega e amigo, Pedro Anísio, assistia o ex-seminarista arrumar as malas. Manuel estava fazendo sua bagagem intelectual, embalando os livros tantas vezes compulsados na difícil disciplina de postulante a padre.
— Manuel Carlos, me dá este livro. Você é estudioso, mas nunca gostou de Lógica, — pediu Pedro Anísio ao colega.
Neco arrebatou o tratado de Lógica das mãos do amigo e exclamou:
— Este livro eu não empresto, não troco, não dou e não vendo a ninguém!
E tratou logo de acomodá-lo em segurança no fundo da mala.
— O que é que você vai fazer com esse livro de Lógica, lá em Princesa, sem gostar dele, Manuel Carlos? — perguntou o seminarista Pedro Anísio.
— Quando chegar em casa, vou botá-lo no mourão da cancela do curral e dar-lhe um tiro de lascar o cano do bacamarte!
— Não duvido que você faça mesmo, — comentou Pedro Anísio, conhecedor do temperamento do piedoso colega que gostava de rezar longos rosários e novenas, e de tomar atitudes radicais diante do que lhe contrariava.
Manuel fez a longa viagem de volta, já sem a batina, um chapéu de massa cinzento substituindo o chapéu preto de padre, viagem agora maior pela ansiedade do encontro com a prima Toinha.
Refeito da viagem, Manuel tirou o tratado de Lógica do baú e se pôs a caminho da Olaria, a fazenda que lhe coube por herança ainda em vida do pai. Foi rever o baixio do riacho Gravatá, o curral velho e curtido de tantos mugidos.
Equilibrou o grosso livro de Lógica no topo do mourão da cancela de aroeira. Despejou no bacamarte três medidas de pólvora preta, socou bem a bucha com a vareta; carregou a arma com balotes de chumbo, pregos de encaibrar, badalos de chocalhos velhos, a mão de um almofariz, um molho de chaves sem uso, alguns níqueis do Império, que não vogavam mais, dois palmos de um pedaço de corrente, o olho de um enxadeco, um punhado de seixos do rio, chifres de bodes, socou novamente a bucha com a vareta; escorvou o ouvido com uma pitada de pólvora, armou o fuzil de pederneira, recuou cinco passos. Botou um pé atrás e apontou o boca-de-sino em direção ao tratado tantas vezes folheado e odiado, segurando a arma lateralmente ao corpo, sem apoiá-la no ombro.
O formidável estampido ecoou na Olaria, cortando o riacho Gravatá e ribombando nas quebradas da serra do Gavião, o bruto coice do tiro jogando o bacamarte para trás, descrevendo um semi-círculo, seguro pelas duas mãos do artilheiro. Foram penas de folhas para todos os lados, o vento vadio da manhã levando-as levemente por sobre as cercas de varas trançadas, alguns pedaços de papel caindo na bosta mansa das vacas.
Neco apanhou o chapéu que lhe caíra da cabeça com o recuo do bacamarte e voltou para casa, a alma aliviada pelo incenso da pólvora, o turíbulo do boca-de-sino balançando na mão.
O ex-padre que estava para ser casou-se na igreja do Bom Conselho com a prima Toinha. Festa grande, com a presença de toda a parentela, da sociedade da vila e dos arredores, de Tavares, Alagoa de Cruz, de Patos e São José, até do Pajeú, de Flores à Caiçara.
Seu Manuel Carlos e Dona Toinha foram acompanhados por um casal de negros ventres-livres da casa do Coronel Marcolino, descendentes de Padrinho Joaquim e Madrinha Luiza, como acontecia com todos os filhos do Coronel quando se casavam.
Os primos tiraram uma grande e saudável prole. O ex- padre-em-ser passou a ser respeitado como um dos intelectuais de Princesa, que discutia de igual para igual com os clérigos e com os doutores, falando bem a língua materna e outros idiomas — vivos e mortos.
O jovem Neco virou o Major Manuel Carlos, da Guarda Nacional, fazendeiro, delegado. Virou cantiga nas redondilhas do povo, no bloco dos negras Cambindas:

Seu Mané Carlos
Foi para Recife,
Foi comprar dois rifles
Do papo-amarelo,
E uma parabela
Da bala de aço
Pra dar a Anastaço
Pra brigar com ela.
Anastácio era um aguadeiro com fama de valente, do bloco carnavalesco das Cambindas, casado com a viúva de Pedro Fogueteiro, Carmélia Grossa. Sua valentia serviu de mote e de troça para os companheiros de bloco.
Depois o Major assumiu o cargo de diretor da Mesa de Rendas e, na Guerra de Trinta, foi promovido a marechal-de-campo do Coronel Zé Pereira, seu irmão e colega de claustro.
A igreja perdeu um padre durão. Mas o Território Livre de Princesa ganhou um arrojado e eloqüente ministro da Guerra que, antes das batalhas, incendiava os homens com inflamados sermões e dominava tanto a Teologia quanto a Estratégia — muito além da Lógica.

HOJE TEVE ESPETÁCULO

Marçal Flandreleiro tinha um jumento muito manso, sem-vergonha como o dono. Era um jumento castanho claro, com a cruz do Menino Jesus, adquirida quando fugou o Salvador para o Egito, bem desenhada na cernelha e descendo pela pá; a cabeça pequena e bem feita, as grandes orelhas aprumadas. Um jumento lorde, baixeiro, inteiro, porém manso de se pisar no rejeito. O jegue chamava-se Tatu-Bola.
Marçal usava Tatu-Bola para levar seus flandres para as feiras das vilas, póvoas e cidades vizinhas: Jericó, Patos, São José, Tavares, Flores, Triunfo. O jumento de Marçal era conhecido dos meninos da rua, de tão manso e dado com todos que era. Quando chegava um circo em Princesa e os meninos eram convocados para “gritar palhaço”, eles sugeriam logo o jumento de Marçal para fazer parte da promoção. O palhaço montava-se de costas no jumento, no osso, e saía à frente dos garotos, todos com a cara pintada, puxando o coro:

— Hoje tem espetáculo?
— Tem, sim senhor!
— Às sete e meia da noite?
— Tem, sim senhor!

E as portas e janelas se enchiam de caras curiosas com a novidade no ramerrão da vila.

— Olha a negra na janela!
— Com a cara de panela!
— O palhaço, o que é?
— Ladrão de mulher!

— Hoje tem espetáculo?
— Tem, sim senhor!

Às sete e meia da noite, os moleques de cara pintada tinham entrada grátis para assistir o espetáculo. Só o jumento de Marçal não ia ao circo mambembe que aportara à princesa. Com o tempo, o uso e o abuso, Marçal foi se chateando de emprestar Tatu-Bola para a cerimônia de gritar-palhaço. E preparou uma das suas:
Por várias vezes Marçal amarrou o jumento no quintal de sua tenda de flandreleiro e pagou a um sujeito encaretado, vestido de palhaço, para chicotear o asno. Esse procedimento durou meses, até o jumento reagir a coices e dentadas à simples visão de seu carrasco encaretado, travestido de palhaço.
Um dia chegou à Princesa mais um mambembe que fazia o nomadismo do Sertão. A claque de moleques foi se oferecer no circo, para sua prática costumeira, e deram notícia ao palhaço do jumento de Marçal, jumento manso e acostumado a levar palhaço no lombo, em meio a zueira da molecada. Tudo certo, foram pedir o jumento a Marçal:
— Tá bem, garotada. Mais tarde eu vou no cercado e trago o jumento para a rua. Deixo ele amarrado nas carnaúbas detrás da igreja.
— Depois a gente trás o bichinho, seu Marçal. Ninguém vai judiar com ele.
De tarde, os meninos e o palhaço se dirigiram para os fundos da Matriz, na confluência da Rua Grande com a Rua Nova, onde havia um par de carnaubeiras, tão juntas que faziam um “v”, em busca da luz, ou adivinhando a invencibilidade de Princesa diante de toda a polícia militar, em 1930.
O jegue estava lá, balançando a sexália preta, desembainhada. Um menino puxou o cabresto do jumento, atado à uma das carnaubeiras. Estava tão acostumado com a mansidão do asno que nem notou suas orelhas murchas. Quando o palhaço, de costas, foi passando a perna no lombo do jegue, levou um duplo coice nas nádegas cobertas pela calça frouxa, os fundos lá no joelho.
O palhaço foi cair perto da porta da sacristia. Quando se levantou, o jerico já vinha para cima dele, com suas formidáveis mandíbulas ameaçadoramente abertas para a dentada medonha, capaz de partir um marmeleiro seco ou um osso de um bicho morto, transformado em repasto para o jumento na Seca.
O palhaço não hesitou: subiu a escadaria do oitão da da sacristia e adentrou às pressas a igreja, gritando por Nossa Senhora e todos os santos. Mas o seu desespero não obteve asilo: a beata Maria Sérgio gritou, estérica e escandalizada, vestida no seu hábito preto, e, de vassoura na mão, investiu contra o palhaço. O artista ainda tentou recuar, mas Tatu-Bola tinha subido a escadaria e já entrava na sacristia, zurrando com toda ira e todos os dentes de sua queixada aberta, seguido pela súcia de caras pintadas.
O palhaço correu para dentro da nave, arrodeou o altar-mor, mas Tatu-Bola, como um possesso, não afrouxava sua perseguição nem os zurrados. Somente quem já viu um jumento enfurecido, capaz de matar gente e onça, pode imaginar o deus-nos-acuda que Tatu-Bola provocou.
Era dia e hora de confissão. O padre Floro deu um pulo do confessionário e, aos gritos, exorcizava o santo animal, ao mesmo tempo em que amaldiçoava o palhaço saltimbanco dos bancos. As contritas beatas que estavam na fila do confessionário correram espavoridas para a saída da igreja, gritando jaculatórias.
Só a muito custo o sacristão Antônio Soares, munido de uma trave de aroeira, que servia para fechar uma das portas da igreja, conseguiu tanger Tatu-Bola para fora da Matriz. Mas o jumento tanto pulava, quanto escoiceava, zurrava, peidava e cagava, e não foi sem maiores vexames, pânico e prejuízos que evacuou a Matriz de Nossa Senhora do Bom Conselho, carregando no lombo a cruz do Menino Jesus, que o madeiro do sacristão não respeitava.

A DANÇA DO URUBU

Marçal Flandreleiro tinha um urubu de estimação, criado com todo luxo. A ave fora apanhada no ninho, quando ainda era branco e engulhava ao ver gente. Marçal criou o bicho com pirão de leite, dado no bico, guardado numa gaiola de arame, modo os gatos. E o urubu cresceu em graça e sabedoria. Marçal botou-lhe o nome de Seu Vigário.
Quando o urubu já estava grande, Marçal fez-lhe um poleiro de flandre, aberto, com uma cuia para comida e outra para água, uma plataforma em baixo, uma argola para a corrente que prendia a ave por uma das pernas e um buraco na folha de flandre lateral, para fixação na parede. Em tudo semelhante ao poleiro dos papagaios.
Esse artefato era mais para dar um lugar definido à ave e evitar que ela ficasse sujando a casa, pois o urubu era manso de solta, com as penas de uma asa cortada. Quando o flandreleiro queria, soltava o bicho dentro da tenda e ele ficava perambulando entre as pessoas que faziam platéia a Marçal. O artista dizia: “Dê cá o pé, meu padre”, e o urubu se empoleirava no seu braço.
A ave de Marçal passou a ser uma das atrações da cidade. Um dia, o flandreleiro resolveu ensinar o urubu a dançar. Colocou um taxo velho emborcado no quintal e amarrou o urubu com uma corrente em cada perna, as correntes atadas em cada asa do taxo. Em baixo do taxo de flandre, um braseiro aceso esquentava a lata. Feito isso o flandeleiro tocava um realejo de boca, e o urubu alternava os pés em cima do taxo quente.
A continuidade do treinamento levou a ave a repetir o movimento dos pés ao simples toque da gaita. Estava pronto o espetáculo: Marçal anunciou que o urubu tinha aprendido a dançar e o povo pagou para ver. O flandreleiro isolou um pedaço da tenda com um lençol, botou o taxo no canto da parede, com o urubu em cima, e tocou o realejo. A ave dançou!
Todos se adimiraram, e o boato correu a vila e as vizinhanças. Todos os sábados tinham lugar as sessões de dança de Seu Vigário. Marçal era carne-e-unha com Antônio Soares, e convidou o sacristão para tocar violão na dança do urubu. O sacristão era exímio violonista, assim como seus filhos, principalmente o Chico Soares, que era precoce e canhoto e tocava o violão às avessas, sem adaptar o instrumento para a sinistra. A participação de Antônio Soares deu prestígio ao acontecimento, levando a população para ouvir sacristão tocar e ver o urubu dançar.
Quando a nova chegou aos ouvidos do vigário de Princesa, ganhou a propaganda do púlpito. O padre Floro condenou o fenômeno, proibiu terminantemente o sacristão de participar da “bruxaria”, deu-lhe um esbregue, e denunciou o acontecimento como “coisa do Cão”, ameaçando excomungar o flandreleiro por sua heresia e blasfêmia, ao chamar um urubu de “Seu Vigário”, e quem lá fosse ver o feitiço.
Aí foi que a tenda de Marçal encheu de gente para ver o urubu dançar. As sessões passaram a se realizar também nos domingos, após a missa, com o povo concorrendo em massa para a tenda de Marçal, que ficava a cerca de 30 braças da igreja.
De vez em quando, para que o urubu não perdesse o condicionamento, Marçal repetia o treinamento: botava s brasas debaixo do taxo e tocava seu realejo de boca para o urubu dançar com maior estímulo.
Por muito tempo, na vila de Princesa, aos sábados e domingos, e nos dias santos, Marçal Flandreleiro tocava o realejo e seu urubu dançava em cima do taxo. A dança era como um coco, em ritmo binário, Seu Vigário pulando num pé e noutro, e o povo pagando para ver — com a espórtula sonegada na missa.
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Um urubu dura um século. O povo de Princesa dizia que, muito tempo depois que Marçal morreu, Seu Vigário não podia ouvir um instrumento qualquer que dançava o seu coco — um pé no chão, outro no ar —, os olhos de abutre procurando o seu dono.


O BURRO DE ZÉ PRETÃO


Zé Pretão era um negro forte, que vivia de botar água nas casas, todas as manhãs, e de beber cachaça todas as tardes.
Era extremamente pobre, e não tinha sequer um jumento para ajudá-lo a fazer o serviço de aguadeiro. Seu recurso era uma ancoreta grande, enorme, que poucos homens podiam carregá-la. O negro enchia a ancoreta d’água no açude Riacho do Meio, botava na cabeça, e abastecia as casas da vila de Princesa.
Casado com a preta Sá Joaquina, Zé Pretão morava no casebre de um cercado por detrás da Rua Grande, nos fundos da casa do velho João Sitônio, do lado da serra do Gavião. Não tinham filhos. Uma vez, a menina Carmélia adentrou a casa de Zé Pretão e encontrou Sá Joaquina fazendo o almoço: uma panela de feijão puro, sem mistura.
A menina pediu um pouco daquele feijão, comeu-o, e disse a Sá Joaquina que ia em casa buscar um pouco de feijão para ela experimentar. Veio daí uma terna amizade entre Sá Joaquina e a menina Carmélia,minha mãe, que pediu à minha avó para chamar Sá Joaquina a ajudar no serviço da cozinha de casa. Dona Joaninha já dispunha de outras auxiliares, mas atendeu o pedido da filha.
Veio o São João, vieram as pamonhas, as canjicas, as raspas tostadas dos tachos, os bolos-de cacos. As famílias mandavam provas de seus pratos de milho umas às outras. As casas engalanadas com bandeirinhas coladas com grudes em cordéis aéreos, iluminadas com lanternas de papel redomando velas.
As quadrilhas ocupavam pavilhões no meio das ruas, os trajes caipiras coloriam a noite com suas cores e movimentos, as danças tocadas pelos foles que rasgavam a noite com suas notas luminosas. Os balões seguiam no céu o caminho das almas, tangidos pelos foguetões. Os fogos não deixavam São João nem seu carneirinho dormirem na sua noite.
Todos faziam suas previsões. As moças e os rapazes enfiavam facas nas bananeiras para lerem, nas manchas do tanino, o nome dos seus futuros noivos e noivas. Os mais velhos olhavam o fundo das bacias d’água para ver se viam seu rosto refletido: se não vissem, não comemorariam o próximo São João. Mais tarde, os que tinham fé atravessavam descalços as brasas das fogueiras. Os bacamartes e reiúnas disparavam seus tiros de carvão explosivo da jurema preta, que dispensa enxofre e salitre para fazer pólvora.
A menina Carmélia tomou Sá Joaquina por madrinha de fogueira, mãos dadas perto das brasas:

— São João dormiu,
São João acordou:
Você vai ser minha madrinha,
Que São João mandou.

— São João dormiu,
São João acordou:
Você vai ser minha afilhada,
Que São João mandou.

Mas os outros ficaram mangando de Carmélia por ela ser afilhada de Sá Joaquina, tão preta, tão pobrinha. Para arremediar a situação, a menina chamou Sá Joaquina para serem comadres de fogueira, mãos dadas na beira do fogo:

— São João dormiu,
São João acordou:
Vamos ser comadres,
Que São João mandou.

Na manhã de um sábado, um burro caiu no pátio da feira. Era um burro cardão, de bom porte, ainda novo. O dono tirou-lhe a cangalha e o burro ficou arfando, deitado de lado no grande lajedo do pátio da feira, movendo as pernas em espasmos, os cascos duros riscando a pedra, uma baba branca a sair-lhe da boca, os olhos doces mirando o infinito que o aguardava.
Os feirantes lamentavam e comentavam a morte de um burro tão bom, forte, bem tratado, de boa aparência. Quase sempre os muares têm boa aparência: herdam o porte da égua mãe e são animais de grande rusticidade, frugais, característica puxada ao pai jumento. Estes são quase onívoros: quando a Seca aperta, comem a carcaça dos vegetais e dos bichos que não resistiram ao estio.
— Vinha andando e caiu.
— Não pode ter sido tingui, pois o animal burro, nem o animal cavalo, nem o animal jumento não comem a rama venenosa.
— Lá em nós é alastrado de tingui. De vez em quando a gente perde uma rês. Não se pode nem tanger depressa uma rês, que o bruto morre. São todas intiguijadas.
— Pra se trazer gado para a feira é preciso deixar os bichos um mês num cercado que não tenha a rama, pra desintiguijar.
— Ovelha, então, nem se fala; não pode nem chegar perto da rama. E aqui e acolá o tingui ainda mata bode.
— Tingui só serve para pescar.
— Terá sido cobra?
— Estamos em agosto, é tempo de corais.
— É difícil de se ver marca de cobra nas patas dos bichos.
— É difícil de dizer o que foi.
E o burro continuava sua lenta agonia, quando chegou Zé Pretão e se acercou da roda de gente em torno do animal. O negro botou a ancoreta no chão e perguntou:
— Quem é o dono do burro?
Um homem branco, pequeno, trajando algodão cru, olhou o grande homem negro vestido de andrajos e retrucou:
— Sou eu. O que é que vosmecê deseja?
— Quero comprar o burro — afirmou Zé Pretão.
— Sua graça?
— José Pretão de Moraes.
— O burro está morrendo, Seu Zé Pretão. Não serve para carregar sua ancoreta.
— Mas diga quanto é o burro.
— Não vou vender um animal que está morrendo. Não quero seu dinheiro.
Zé Pretão insistia na compra do burro, e depressa correu o boato na feira de que o preto aguadeiro queria comprar um burro que estava morrendo no lajedo do pátio. A roda de curiosos aumentou.
— Diga quanto é o burro, meu branco — insistia Zé Pretão, que já tinha tomado umas nas bodegas do sábado.
— Vosmecê quer comer o burro? — perguntou o dono do animal.
— Zé Pretão agora quer ser marchante de animais — dizia outro.
— Dou um cruzado no burro — falou alto o preto grande. Resolva logo, antes que o burro morra. Só me interessa ele vivo.
A vida inteira o negro fora besta dele mesmo. Todos tinham um cavalo de sela, todos tinham um burro de carga, um jumento aguadeiro..Os jumentos ajudavam muito, trabalhavam sós, conheciam a porta do freguês e esbarravam sem ninguém mandar, para entregar a água ou o leite. Outros aguadeiros, como Tião Vermelho, Zé Vermelho, Manoel Vermelho, Irineu, Anastácio e outros, botavam água em jumentos e burros.
Qualquer pobre tinha um jumento, menos ele. Todos tinham uma cangalha para botar sobre o lombo de um animal. Só ele, Zé Pretão, tangia-se a si mesmo, a rodilha na cabeça, a cangalha no lombo do sonho de um dia tanger um muar. Ele era o mais pobre dos tangerinos, sem relho nem estalo, no coice da miséria.
— Mas ele está morrendo — ponderou o homem, que não queria ser desonesto, principalmente na vista de tanta gente.
— Eu quero ele assim mesmo, — insistia o aguadeiro.
— Deixe eu tirar a cabeçada, — pediu o homem, ainda perplexo diante de tanta insistência. O homem tirou a cabeçada e o cabresto do animal moribundo e disse a Zé Pretão:
— Negócio fechado — confirmou o branco dono do cardão.
O preto meteu a mão no bolso, puxou algumas moedas, catou um cruzado e entregou ao outro. O burro arfou mais uma vez, esticou as canelas e vidrou os olhos. Deixou de respirar e o grande coração parou de bater.
— Agora vosmecê vai me dizer para que é que queria o burro — disse o ex-dono do animal morto.
E Zé Pretão, olhando os presentes em torno:
— Para quando perguntarem, um dia, de quem era aquele burro que morreu na feira de Princesa, o povo dizer:
— Era o burro de Zé Pretão.