Brasil versus Itália
Sitônio Pinto
Se não era domingo, passou a ser. Mas tinha jeito de uma grande tarde de domingo. Depois do jogo, o povo desceu espontaneamente para a Lagoa (a de Detrás, como se chamava, a de Dona Maria, como já se chamou, a dos Irerês, como se chamara, a do Parque Solon de Lucena, como se diz agora). Havia um popular que gritava às pessoas:
- Foi um?
- Não – respondia o passante, para se livrar da abordagem.
- Foi dois?
- Não –. insistia o outro, diante da insistência.
- Foi três?
- Não - prosseguia o diálogo do entremez.
- Foi quatro?
- Foi quatro - ripostava o passageiro, improvisado em escada para o ator do povo.
- Foi quatro! Foi quatro! Foi quatro! - gritava e pulava o brasileiro nato e eufórico.
Anteontem, fez 39 anos daquela memorável partida de futebol em que o Brasil se consagrava tri-campeão do mundo com uma vitória de 4 a 1 sobre a Itália. O certame foi a primeira transmissão direta, pela TV, para o mundo - ou para os países menos pobres do mundo. Aquele histórico 4 X 1 foi cantado em prosa e no poema de Jomar Souto, “Brasil versus Itália”. Vale a pena lembrar e ler.
Antes, a emoção da Copa era transmitida pelo rádio, o aparelho chiando, tossindo e sumindo. Foi assim que ouvi as copas de 58 e 62. Juro que a emoção era maior. Aqueles primeiros minutos do jogo Brasil X União Soviética, na copa de 58, Suécia, foram considerados os maiores minutos da história do futebol, Garrincha driblando toda a defesa, chutando na trave para depois recuperar e cruzar prá Vavá fazer o gol.
Às vezes, os mais jovens me perguntam quem era maior, Garrincha ou Pelé. Eu respondo, sem querer chocá-los:
- Pelé era um jogador como outro qualquer, só que o melhor. Garrincha era diferente de todos: ninguém podia imitá-lo, nem mesmo Pelé. Seu jogo genialmente improvisado tinha um quê de jazz, ou de chorinho. Um era o melhor; o outro, o maior.
Outras vezes, digo assim:
- Pelé era o Machado de Assis do futebol, o mais clássico. Garrincha era o Guimarães Rosa, o mais original.
Mas houve uma coisa, ontem, que eu ainda não tinha visto em campeonatos de seleções. Um jogo disputadíssimo minuto a minuto, palmo a palmo de campo. Mas um jogo limpo, leal, cavalheiro, alegre, elegante. Parecia um amistoso; o amistoso mais cortês e fraternal que já vi, o esporte aproximando as pessoas, como se diz que deve ser. Parecia uma daquelas peladas que Rubem Braga descreve em “As Teixeiras moravam em frente”, nas suas “Duzentas crônicas escolhidas”. O jogo de anteontem, do melhor nível ético e técnico, lembrava uma pelada entre meninos de bairro, com uma ética acima das regras e da arbitragem. Esse “Brasil versus Itália” surpreenderia McLuhan na sua tese da aldeia global. Ela foi superada pelo bairro global em que agora vivemos. Um jogo disputado e confraternizado na África do Sul, aquela em que um dia houve o apartheid.