CHÁ
De pouco adiantaram aqueles chás antigos com sabor de infância. Os eucaliptos davam nos oitões e nas febres. Manhãzinha, forneciam as carrapetas para os jogos na sombra perfumada. Eram pequenos piões pretos, em forma de taças, que rodavam um pedaço de eternidade a um simples estalar de dedos. À tardinha, os eucaliptos gigantes do oitão serviam de pouso aos urubus. Eles traziam a noite em suas asas e se aconchegavam nos galhos frescos como a lua. Nas febres, os eucaliptos vinham para dentro de casa mitigar as imagens do delírio com o chá de suas folhas leves e altas, enluaradas, muito mais altas que o ar, muito mais leves que a gravidade — aquela que fazia descer os balões.
A gripe chegou debochada e perversa, duas vezes perversa: uma, enquanto cruel; outra, enquanto fugiu aos modos próprios de gripe. Ela não se limitou ao defluxo, ao ataque da garganta, à dor de cabeça, à febre antiga. Aliás, o catarro foi pouco, sequer escorreu pelo nariz com seu sabor agridoce de antanho; nem mesmo entupiu as ventas. A garganta não doeu, não inflamou. Estranhamente, a vítima escarrava sangue, principalmente pelas manhãs. Essa, uma das perversidades da gripe. As outras: o vômito compulsivo e nauseado, acompanhado de sutil disenteria. O resultado era uma fraqueza incondicional que desarmava ainda mais o paciente diante da influenza maligna.
Os chás, as pastilhas, as pomadas perderam toda sua magia e poderes exorcistas diante dos demônios das febres. Apenas aquele sabor azul de vento muito limpo, aquele sabor anil que enxágua e seca o vento, aquele sabor de céu que ao chegar à fria e branca areia torna-se verde-claro na folha do eucalipto, apenas aquele sabor largo de oitão chegou sua mão à fronte e enxugou a memória.
Antes, não se respeitavam os costumes; agora, não se respeita o ambiente. O que dá nessas febres desabusadas que assolam o País e os oitões. O céu se faz inanimado sem as asas a pino. Só a palidez das nuvens insiste em demandar o crepúsculo. Os defensivos mataram de tal forma a vida, que os urubus, pastores da morte, morreram também. Os oitões trancaram-se em vielas sob as violas dos réquiens.
Ao longo de quase meio século, só vi duas gripes mais fortes que essa: a famigerada “asiática”, que fazia sangrar o nariz, e uma que atacou Brasília aí por volta de 1977. Da asiática tive recaída e quase perdi as férias de julho de 1959; da influência do Planalto, perdi 15 (quinze) quilos e a ilusão daqueles ermos. Mas ambas, a da Ásia e a do Planalto, tinham jeito de gripe. É verdade que não me faltou quem me diagnosticasse e sugerisse à dona da pensão, senhora Joana, a assepsia do despejo. Só não morri graças à caridade da santa mulher que nos fornecia refeições e me albergou na preamar da gripe.
Mas essa gripe que veio das Alagoas — a collorida — se apresenta como um objeto não identificado. As dores no tórax não permitem posição para dormir, e, combinadas com o catarro sangüinolento, deixam a nítida impressão de pneumonia. Às vezes, a impressão se confirma. Papai, não fosse antes de tudo um forte, e, depois de tudo, um sertanejo, não teria tirado a conta certa com a pneumonia em que sua gripe degenerou.
Quer dizer que degenerada ela já é; o que pode ocorrer é a exacerbação da degenerescência. Aviso aos navegantes: esses efervescentes coloridos que chiam por aí não adiantam muita coisa. O que se tem a fazer é furar a veia e mandar um pico de vitamina C com glicose. Assim: 20 cc de glicose, já vitaminada, acrescidos de 5cc de ácido ascórbico, a popular vitamina C. Mandar na veia, todo dia, e ficar um pouco à sombra da farmácia, enquanto o sangue se espraia.
Depois, é voltar para os oitões, às carrapetas, aos eucaliptos, ao cheiro azul que se achegue à febre e aquiete a memória.
24-5-1989
O CACHÊ DE DEUS
E a voz de Amstrong surge feito um canal ligando o Mississipi ao Volga, o velho do rio de repente engajado com os barqueiros da Rússia. Olhos negros, a canção eslava, derrama-se em lento acalanto, para depois explodir na alegria dos funerais negros de Nova Orleans. Na ida para o campo santo, as vozes ainda escravas acalantando o filho irmão no seu berço final; no retorno para o que restou da senzala, o carnaval do funeral cantando e dançando a mesma canção, mas em andamento de marcha libertária, o cativeiro redimido no silêncio da morte.
O arranjo de Armstrong transforma Olhos negros em canção do Mississipi. É uma das mais comoventes provas da universalidade da arte e da origem comum do homem, os mesmos sentimentos exsudando sob tons diferentes de pele. Armstrong resgata a confissão de amor chorada no remanso do rio russo, ou nos ombros das grandes montanhas da Georgia, e acrescenta, ao branco lamento das neves, o azul cativo dos algodoais. Como o preto velho do Mississipi, ele não planta algodão mas sabe de coisas: he d’ont plaint cotton, / he must knows something...
Olhos negros, no trompete e na voz de Armstrong, poderia ser o hino da ONU, de qualquer movimento ou organização humanista que, sem negar o caráter das nações, afirme a unidade indivisível de todos os povos. A voz de quem foi expatriado do Congo para o Mississipi a fim de construir a América entoa a canção antiga como os amores de todas as Rússias, de todas as pátrias, de todos os solitários, como se fosse uma barcarola do rio escravo pautado nas margens senhoriais, mas uma canção de todas as alcovas, da casa grande à senzala.
Não sei se Armstrong ignorava a letra original da cantiga. Na sua versão ele desenvolveu uma espécie de Samba do crioulo doido, aproximando palavras que nada tinham a ver uma com outra. Talvez Armstrong fugisse à censura do macartismo; talvez ele quisesse ressaltar a importância da melodia acima do discurso, talvez provar que os significantes podem significar qualquer significado, dependendo de como sejam enunciados. E aplica sua característica própria de emitir algum significante escolhido na letra como fulcro do discurso: faz assim com as palavras be mine, reduzindo uma frase melódica de sete sílabas para apenas duas, com o mesmo estilo aplicado em Blues in the night — crepusculada na mais profunda noite.
Cantando Olhos negros, Armstrong ri, chora, e ameaça vomitar em plena melodia, para entregar-se na lassidão final. Tudo isso antecedido pelos acordes de um piano maravilhoso, que ele interrompe em dois grunhidos arrebatados, e acompanhado por um banjo fiel — o único instrumento da jazz band herdado da África. Depois, o ataque do pistom artilhado por toda a banda, com destaque para o revesamento de uma sessão de saxes e clarineta, os soberbos (como diria Luiz Ramalho) solos de bateria e o solene pronunciamento do contra-baixo, e o banjo sublinhando baixinho o pranto coletivo.
A regência de campo parece não pertencer ao contra-baixo e, sim, à bateria, ela anunciando, como uma extra-sístole, o destaque triunfal de cada solo, ou a sucessão das secções, ou a redução da banda a um combo, ou o ataque uníssono de toda o grupo.
Em Olhos negros, Armstrong me proporcionou uma experiência iluminada: pela primeira vez ouvi a voz de Deus, e não tive medo. É uma voz forte, muito forte, mas extremamente doce e até um pouco triste. Mas de uma tristeza soberana e calma, como a paz da viuvez de Bach na elegia à sua prima-esposa. Deus, onisciente, também sabe cantar e prova isso usando o seu servo Armstrong.
Essas cenas podem ser vistas no filme Música e lágrimas (The Glenn Miller story) e podem ser ouvidas na fita K-7 encontrável nas boas casas do ramo. Não é muito caro, o cachê de Deus não é tão alto assim.
14-02-1989
QUE BOM TE VER VIVA
A criação artística brasileira ainda não deu o merecido destaque à instituição da tortura, praticada como principal artifício de sustentação do golpe militar recentemente extinto (ou quase). Talvez o tempo do terror oficial ainda seja muito recente para que a manifestação do pensamento criador tenha oportunidade de se realizar. Mas a era da comunicação imediata reclama essa contribuição dos artistas brasileiros. A tortura é notícia que ainda não foi devidamente massificada e muito menos esgotada na sua trágica riqueza temática. Notícia urgente para a formação da consciência brasileira, principalmente da novíssima geração.
Que bom te ver viva, filme que se propõe documentário-ficção sobre os gritos e silêncios da tortura política, ainda não de todo cicatrizada na ferida exsudante da civilização brasileira, está em exibição no Banguê. Já pelo tema se trata de uma peça de arte que merece a atenção de todos os interessados na formação de uma consciência do Brasil contemporâneo. Mesmo sem se considerar o aspecto estético — merecedor de prêmios e aplausos da crítica (ganhou o primeiro lugar no 22º Festival do Cinema Brasileiro, ano passado) — Que bom te ver viva é um filme de assistência obrigatória já pelo tema que aborda. Seus resultados estéticos serão acessórios ao valor maior da verdade e da coragem em dizê-la, atendendo necessidade urgente da informação e formação nacionais.
Neste momento histórico, quando o próximo governo anuncia a queima dos arquivos do Serviço Nacional de Informações (SNI), famigerado órgão de espionagem, cagüetagem, arapongagem, xeretagem, chantagem, dedurismo, fuxico, intriga, sabotagem, escuta, intromissão, violação, traição, mentira e tudo o mais que não presta, registros como o filme Que bom te ver viva assumem um papel importantíssimo para a reconstituição do crime histórico e genocida, perpetrado contra o povo brasileiro pela última ditadura (de 64-84, reprise de 30-45).
A queima dos arquivos do SNI pode ter a mesma intenção dos que incineraram os cartórios do tráfico escravo brasileiro, após a abolição. Sob a desculpa de se apagar uma vergonha, disfarçava-se a desculpa de se esquecer uma culpa. Não se rasgam páginas da História, principalmente as páginas que registram crimes: os erros históricos são necessários à construção de um futuro menos equivocado. A última contribuição da vergonha histórica é servir de referencial para que o futuro não repita situações semelhantes, mesmo sem a oportunidade de se punir fisicamente os culpados. Um referencial, portanto, mais elucidativo e educativo de que acusatório e punitivo.
Que bom te ver viva, filme roteirado, produzido e dirigido por Lúcia Murat, traz duas contribuições à contemporaneidade brasileira: a crônica de um capítulo macabro da História do Brasil e o depoimento de sobreviventes da tortura como libelo acusatório do regime carrasco. A anistia de que gozam, hoje, os torturadores, foi outorgada por eles mesmos; não tem, assim, o referendo das vítimas, nem o reconhecimento popular. Não é coisa julgada pelo tribunal do povo, mas acórdão dos próprios tribunais da inquisição, ainda sujeitos à instância derradeira e soberana da gente brasileira. Enquanto as vítimas sobreviverem, e os carrascos viverem, será oportuna a abertura do processo justiçador — e por que não? — da vingança popular.
Que bom te ver viva traz a interpretação principal de Irene Ravache, atriz já consagrada pelos meios de comunicação eletrônicos. Este é o grande momento de Irene resgatar seu talento e sua beleza do popularesco que imbecilizou ainda mais o público brasileiro, através da televisão — atendendo necessidade estratégica da própria ditadura e do sistema que ainda se perpetua, tendo como principal ferramenta a hipnose de massas da TV.
Que bom te ver viva, filme que se propõe documentário-ficção sobre os gritos e silêncios da tortura política, ainda não de todo cicatrizada na ferida exsudante da civilização brasileira, está em exibição no Banguê. Já pelo tema se trata de uma peça de arte que merece a atenção de todos os interessados na formação de uma consciência do Brasil contemporâneo. Mesmo sem se considerar o aspecto estético — merecedor de prêmios e aplausos da crítica (ganhou o primeiro lugar no 22º Festival do Cinema Brasileiro, ano passado) — Que bom te ver viva é um filme de assistência obrigatória já pelo tema que aborda. Seus resultados estéticos serão acessórios ao valor maior da verdade e da coragem em dizê-la, atendendo necessidade urgente da informação e formação nacionais.
Neste momento histórico, quando o próximo governo anuncia a queima dos arquivos do Serviço Nacional de Informações (SNI), famigerado órgão de espionagem, cagüetagem, arapongagem, xeretagem, chantagem, dedurismo, fuxico, intriga, sabotagem, escuta, intromissão, violação, traição, mentira e tudo o mais que não presta, registros como o filme Que bom te ver viva assumem um papel importantíssimo para a reconstituição do crime histórico e genocida, perpetrado contra o povo brasileiro pela última ditadura (de 64-84, reprise de 30-45).
A queima dos arquivos do SNI pode ter a mesma intenção dos que incineraram os cartórios do tráfico escravo brasileiro, após a abolição. Sob a desculpa de se apagar uma vergonha, disfarçava-se a desculpa de se esquecer uma culpa. Não se rasgam páginas da História, principalmente as páginas que registram crimes: os erros históricos são necessários à construção de um futuro menos equivocado. A última contribuição da vergonha histórica é servir de referencial para que o futuro não repita situações semelhantes, mesmo sem a oportunidade de se punir fisicamente os culpados. Um referencial, portanto, mais elucidativo e educativo de que acusatório e punitivo.
Que bom te ver viva, filme roteirado, produzido e dirigido por Lúcia Murat, traz duas contribuições à contemporaneidade brasileira: a crônica de um capítulo macabro da História do Brasil e o depoimento de sobreviventes da tortura como libelo acusatório do regime carrasco. A anistia de que gozam, hoje, os torturadores, foi outorgada por eles mesmos; não tem, assim, o referendo das vítimas, nem o reconhecimento popular. Não é coisa julgada pelo tribunal do povo, mas acórdão dos próprios tribunais da inquisição, ainda sujeitos à instância derradeira e soberana da gente brasileira. Enquanto as vítimas sobreviverem, e os carrascos viverem, será oportuna a abertura do processo justiçador — e por que não? — da vingança popular.
Que bom te ver viva traz a interpretação principal de Irene Ravache, atriz já consagrada pelos meios de comunicação eletrônicos. Este é o grande momento de Irene resgatar seu talento e sua beleza do popularesco que imbecilizou ainda mais o público brasileiro, através da televisão — atendendo necessidade estratégica da própria ditadura e do sistema que ainda se perpetua, tendo como principal ferramenta a hipnose de massas da TV.
20-1-1990
JANELA DO BOI-SÓ
Lua telefonou avisando o aniversário do seresteiro Ozório Paes. Sexta-feira passada, se vivo fosse, o letrista paraibano, admirado por Carlos Drummond de Andrade, estaria completando 95 anos. A gente tem de dizer assim — admirado por Drummond — para ver alguém se lembrar do autor de Oh, palidez! O próprio Drummond não sabia quem era o autor da modinha que motivou sua crônica, apenas lhe sabia o nome — “um certo Ozório Paes”— e, menos ainda, o do intérprete — “um incerto Jota Monteiro”. O poeta e cronista de Cadeira de balanço perguntava ao leitor pelo certo e o incerto; o leitor demorou. Quando respondeu, Drummond morreu.
Mas Lua vive no Boi-Só. Lua tem um filho que tem uma taverna na travessa Ozório Paes, antiga rua do Amor. Se for dito assim, os leitores de Drummond continuarão na mesma: pouca gente sabe onde fica a travessa e a taverna, Amor é uma rua antiga, endereço secreto. Um cronista mais ou menos social dirá que Lua Gomes, a toutinegra do Boi-Só, é mãe de Adroaldo, dono do bar Última Sessão. Pronto: todos os leitores de Drummond que deambulam em Tambaú à beira-noite sabem do Última Sessão, o bar e seu buquê meio-doce, filial da fazenda Boi-Só — a querência à beira-rua, cercada de bordões, fértil de serenatas.
Mas Lua vive no Boi-Só. Lua tem um filho que tem uma taverna na travessa Ozório Paes, antiga rua do Amor. Se for dito assim, os leitores de Drummond continuarão na mesma: pouca gente sabe onde fica a travessa e a taverna, Amor é uma rua antiga, endereço secreto. Um cronista mais ou menos social dirá que Lua Gomes, a toutinegra do Boi-Só, é mãe de Adroaldo, dono do bar Última Sessão. Pronto: todos os leitores de Drummond que deambulam em Tambaú à beira-noite sabem do Última Sessão, o bar e seu buquê meio-doce, filial da fazenda Boi-Só — a querência à beira-rua, cercada de bordões, fértil de serenatas.
O Boi-Só é um dos raros tombamentos do Patrimônio Histórico e Artístico por iniciativa e zelo dos proprietários. No mais das vezes, o proprietário dos imóveis tombados deixam o prédio cair para dar espaço à especulação. Mas a fazenda Boi-Só é propriedade da Lua, que pediu, ela mesma, o tombamento do seu horizonte bucólico. Lua tem o ímã do resgate, e partiu, noche de ronda, em busca de semínimas notícias de um certo Ozório Paes.
O seresteiro de Drummond (é preciso dizer assim!) nasceu em Alagoa Grande (nem Gonzaga Rodrigues, o cronista do Brejo, sabia), aos 14 de junho de 1895. O seresteiro fez época na boêmia paraibana entre o pós-guerra de 1918 e o golpe de 1930. As canções do Doutor Ozório andavam de boca em boca, clientela do dentista que montou consultório e residência na rua do seu xará, general Ozório, de onde saiu para o Recife. A morte veio ouvir-lhe na metade do século, abril de 1949. Mas um incerto Jota Monteiro gravou algumas de suas canções — para enlevo de Drummond. Oh, Palidez! foi prefixo musical, durante um bom tempo, do programa Hora da Saudade, na Rádio Tabajara. E a Geração 59, o Clube do Silêncio e os Párias ouviam o poeta Zezito Cabral cantar Oh palidez, imácula e bendita, / a palidez serena do teu rosto, / que me tem sido tanta vez maldita, / que me tem sido na vida meu desgosto...
Lua do Boi-Só localizou e contactou, em Recife, as viúvas de Ozório Paes e Jota Monteiro. Descobriu dois livros de poemas, canções e a história do Doutor Ozório — que é a história da boêmia paraibana dos anos enluarados antes do eclipse de Trinta. Lua vai fazer um livro cantando a pauta e a crônica daquelas serenatas, mas, antes, vai promover homenagem ao Doutor Ozório, no bar Última Sessão, com o grupo de serestas de Agmar Dias Pinto, mais uma exposição iconográfica. Não é de bom-tom que eu fure o livro de Lua com as notícias que ela mesma me deu, e paro por aqui. Basta-me a glória de sua pesquisa ter sido provocada por uma crônica de Farolito, Última serenata, que Lua respondeu no estilo das musas assim encantadas: abrindo a janela, uma certa janela do Boi-Só.
O seresteiro de Drummond (é preciso dizer assim!) nasceu em Alagoa Grande (nem Gonzaga Rodrigues, o cronista do Brejo, sabia), aos 14 de junho de 1895. O seresteiro fez época na boêmia paraibana entre o pós-guerra de 1918 e o golpe de 1930. As canções do Doutor Ozório andavam de boca em boca, clientela do dentista que montou consultório e residência na rua do seu xará, general Ozório, de onde saiu para o Recife. A morte veio ouvir-lhe na metade do século, abril de 1949. Mas um incerto Jota Monteiro gravou algumas de suas canções — para enlevo de Drummond. Oh, Palidez! foi prefixo musical, durante um bom tempo, do programa Hora da Saudade, na Rádio Tabajara. E a Geração 59, o Clube do Silêncio e os Párias ouviam o poeta Zezito Cabral cantar Oh palidez, imácula e bendita, / a palidez serena do teu rosto, / que me tem sido tanta vez maldita, / que me tem sido na vida meu desgosto...
Lua do Boi-Só localizou e contactou, em Recife, as viúvas de Ozório Paes e Jota Monteiro. Descobriu dois livros de poemas, canções e a história do Doutor Ozório — que é a história da boêmia paraibana dos anos enluarados antes do eclipse de Trinta. Lua vai fazer um livro cantando a pauta e a crônica daquelas serenatas, mas, antes, vai promover homenagem ao Doutor Ozório, no bar Última Sessão, com o grupo de serestas de Agmar Dias Pinto, mais uma exposição iconográfica. Não é de bom-tom que eu fure o livro de Lua com as notícias que ela mesma me deu, e paro por aqui. Basta-me a glória de sua pesquisa ter sido provocada por uma crônica de Farolito, Última serenata, que Lua respondeu no estilo das musas assim encantadas: abrindo a janela, uma certa janela do Boi-Só.
16-6-1991
CURINGA
Para José Silvino Espínola
De repente, o silêncio cerebral e a espuma do silêncio na praia da boca. Tudo é paz, quase como na morte. O corpo náufrago na calçada assiste ao bordejo dos passantes e seu espanto diante do mistério quieto. Um homem debruça-se no portão e olha a vida parada, represando o passeio.
O sol também espia, pára um pouco e demora seu calor sobre o corpo como sem vida, mas tão grave que altera curso e velocidade das derrotas ao largo. Só do sol vem o gesto de enxugar-lhe a espuma em que se diluiu a voz. A espuma presa no arrecife do dente é tudo que restou da onda remota e profunda das águas furtadas do teta-consciente.
A manhã também está parada e sombria, mesmo com o sol debruçado no balaústre das nuvens, feito o homem no portão. A manhã também está silente. Ou o silêncio do mundo atropelou o homem adernado na calçada. A manhã está fria como os homens, o sol é apenas um curioso a mais. Há uma sombra do outro lado da indiferença, uma sombra mais confortável, talvez, que a palidez da manhã. Mas o corpo, no remanso dos curiosos, não flutua até a ilha da sombra
Ninguém o desperta, todos temem o sono compulsório que emerge do náufrago. Ninguém lhe abre o portão ou as pálpebras. É apenas um viandante que parou, a roupa de clandestino, os gestos deportados. Há, no entanto, um gesto misterioso e formidável no seu abandono. Ninguém traduz o seu sinal. Ele não pergunta, mas todos procuram uma resposta à sua mudez. Ele não pede, mas a rua se recusa. Está parado, mas os da manhã têm medo e fogem.
Cara ao sol, a imotilidade do homem acuou os touros na praça da manhã. Sem capa e espada, o matador epilético embruxou os miúras na arena lívida. Os dedos crispados bandarilharam o vento. Os dedos crispados bandarilharam o tempo da manhã, o espaço inaugural da manhã. Mano a mano, o toureador venceu a pressa do dia.
Bastou a síncope do passo — um passo secreto e absoluto que resolveu o caminho, estancou a corrida, calou o olé.
Don Solitário, o matador de todas as corridas, de todos os caminhos, de todas as pressas fugaces, quedava-se indiferente à sua própria glória. Silêncio no seu coração, segredo na sua boca de náufrago, soberano em sua calma de pássaro subterrâneo.
O supremo matador, ou rei dos náufragos, encontrara praça e porto na divisa entre o fora e o dentro, a fronteira de todos os limites, onde o vazio é igual ao compacto. Ele não precisava entrar nem sair, mas o homem debruçado sobre a tranca não sabia. Os passantes fugiam sem desconfiar que ele chegara. Cara ao sol, ele decretava a obsolescência da luz e o ócio da sombra. Os meninos parados como se não fossem da rua. E a rua como se não fosse do bairro nem afluísse às esquinas.
O piloto da eternidade abriu um parêntese no tempo para sua escala. Dispensou aguada e munição de boca. Dispensou o vento e sua roupa e o ciclo das marés e a safra das estrelas. Sua agulha repousava no pólo absoluto. O portulano, o diário de bordo, todas as cartas de navegação eram o refugo de um baralho morto. O navegador da renúncia descobrira o mar oceano do Tao, o mediterrâneo do nada, o estuário do tudo, o eco de todos os silêncios, a sílaba inicial onde os ventos terminam e o som se reduz ao sussurro do Om.
26-4-1989
OS FIGOS DA FIGUEIRA
Para mim, todas as dores têm tamanho.
Experimenta se as minhas mãos são leves
para fazer um penso.
Jorge de Lima
Experimenta se as minhas mãos são leves
para fazer um penso.
Jorge de Lima
Há pessoas que fazem os anos bons, ou pelo menos melhores; não se limitam a desejá-los novos e felizes. No dizer de José Amádio, sobre uma escultura de Max Bill, "há gente no mundo fazendo o mesmo gesto da rosa: / gente que torna o mundo belo para nós, / que esmagamos todas as flores."
Sem dúvida este é um ano novo, o trigésimo após 1964 — aquele ano em que Deus foi banido do país tropical por ser um "mau brasileiro". O ano de 1964 durou duras décadas: só terminou em 1984, no ano bom da redemocratização. Naquelas duas décadas, as pessoas continuaram a desejar-se bons anos, como nessas janeiras; "igualmente, da mesma forma, em dobro", repetiam-se agradecidas. Mas houve as que fizeram os anos bons, ou, pelo menos, menos ruins — até que, um dia, o Menino-Deus voltou do Egito, onde estava exilado com outros maus brasileiros.
É possível que o Menino-Deus, quando voltou do Egito após a morte de Herodes, tenha passado pelo Imip. Os hermeneutas não sabiam o que era nem onde ficava o Imip. Uma gruta, talvez, na estrada de Samaria; uma ermida no Carmelo. O Imip é o porto mais seguro para um menino foragido da injustiça, de todas as injustiças: a que lhe nega a vida quando o condena à morte vil das febres sem bálsamo; e a que lhe tira a vida quando o condena à morte vil do martírio político — seja a degola dos inocentes, seja a tortura no cárcere até a última dor, como foi morto o menino Humberto Albuquerque Câmara Neto, no DOI-Codi, Rio.
Por que me lembro de Humberto, o menino-mártir que sonhava em ser médico, nesse janeiro distante de sua morte em alguma noite de tortura e ditadura? O que ele tem a ver com o presépio onde é sempre Natal, a gruta segura do Imip?
Seu nome está "na peça acusatória básica que foi o ofício de número 8-GAB, reservado, dirigido em 16 de abril de 1969 (...)" juntamente com mais 36 companheiros, acusados de atacar "o Governo e o A.I./5", presentes neste inquérito que folheio emocionado. Humberto e seus 36 companheiros, enquadrados pela ditadura no DL 477/69, eram estudantes de Medicina na Universidade Federal de Pernambuco, nos últimos anos da década de 60.
Sem dúvida este é um ano novo, o trigésimo após 1964 — aquele ano em que Deus foi banido do país tropical por ser um "mau brasileiro". O ano de 1964 durou duras décadas: só terminou em 1984, no ano bom da redemocratização. Naquelas duas décadas, as pessoas continuaram a desejar-se bons anos, como nessas janeiras; "igualmente, da mesma forma, em dobro", repetiam-se agradecidas. Mas houve as que fizeram os anos bons, ou, pelo menos, menos ruins — até que, um dia, o Menino-Deus voltou do Egito, onde estava exilado com outros maus brasileiros.
É possível que o Menino-Deus, quando voltou do Egito após a morte de Herodes, tenha passado pelo Imip. Os hermeneutas não sabiam o que era nem onde ficava o Imip. Uma gruta, talvez, na estrada de Samaria; uma ermida no Carmelo. O Imip é o porto mais seguro para um menino foragido da injustiça, de todas as injustiças: a que lhe nega a vida quando o condena à morte vil das febres sem bálsamo; e a que lhe tira a vida quando o condena à morte vil do martírio político — seja a degola dos inocentes, seja a tortura no cárcere até a última dor, como foi morto o menino Humberto Albuquerque Câmara Neto, no DOI-Codi, Rio.
Por que me lembro de Humberto, o menino-mártir que sonhava em ser médico, nesse janeiro distante de sua morte em alguma noite de tortura e ditadura? O que ele tem a ver com o presépio onde é sempre Natal, a gruta segura do Imip?
Seu nome está "na peça acusatória básica que foi o ofício de número 8-GAB, reservado, dirigido em 16 de abril de 1969 (...)" juntamente com mais 36 companheiros, acusados de atacar "o Governo e o A.I./5", presentes neste inquérito que folheio emocionado. Humberto e seus 36 companheiros, enquadrados pela ditadura no DL 477/69, eram estudantes de Medicina na Universidade Federal de Pernambuco, nos últimos anos da década de 60.
Os milicos queriam-nos cassados, proibidos de estudar em qualquer estabelecimento de ensino. Para tanto, mandaram abrir o notável inquérito que, pela graça do Menino-Deus, teve como presidente e relator um homem (eu ia dizendo pessoa) daqueles que não apenas desejam, mas querem e fazem os anos felizes e bons, ou, no mínimo, melhores. Leiamos esta sentença, que já completa 25 anos melhorados, e que, portanto, tem sotaque histórico:
"A Congregação da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco e o seu diretor não podem, evidentemente, assumir perante a História essa tremenda responsabilidade: de expulsar da Universidade alunos, sem prova cabal de prática de crime; de ter a iniciativa de deixar à margem da sociedade um grupo de estudantes cuja inquietação reflete um desequilíbrio que se verifica em todos os países."
É o parecer que salvou das garras da ditadura 36 acadêmicos, à exceção de Humberto — que foi escolhido pelos deuses da guerra para o martírio.
Humberto, o eleito, não aceitou a segurança do Imip, onde ele e seus colegas estavam a salvo e aprendiam a salvar vidas de outros meninos, praticando a disciplina de Pediatria no Instituto modelo fundado pelo seu mestre e salvador. Humberto, assim como Luciano Siqueira (também pediatra, e presidente do PC do B em Pernambuco), continuaram na militância política que os levou ao cárcere e à tortura. O primeiro foi glorificado na morte; o segundo foi torturado segunda vez pelo agente do DOI-Codi, que mentiu à revista "Veja", caluniando Luciano com a pecha de "dedo-duro". E, pela segunda vez, o parecer do senhor relator defenderá Luciano: agora, no processo que ele move contra aquela revista.
Folheio as páginas deste relatório e nele descubro a receita de um tempo melhor, a fórmula do futuro feliz, dos anos bons, novos e venturosos: é a coragem de enfrentar o momento mais medonho com a dignidade que Deus esparge em seus ungidos. Se nem todos são profetas, eles foram enviados como referência e não cobram direitos autorais: podem ser imitados, caricaturados e plagiados.
O professor Fernando Figueira, por exemplo (e para exemplo), assinou sozinho aquele parecer, como se assinasse mais uma de suas receitas que despacha no Instituto Materno Infantil de Pernambuco, fundado e dirigido por ele, para salvar e ensinar a salvar as mais pequenas vidas. Na época, seu gesto destoou da obediência covarde que fazia curvar o país diante da ditadura. A atitude do professor Fernando Figueira bem pode ter sido o primeiro gesto oficial de desobediência civil contra a tirania. Os pesquisadores da História — que já começa a ser contada, nesse jubileu do Parecer Figueira — hão de provar o que, neste momento, é simples intuição de um cronista do tempo.
Seu gesto de médico tem o poder de curar também o gesto dos homens — do qual a História é a anamnese.
"A Congregação da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco e o seu diretor não podem, evidentemente, assumir perante a História essa tremenda responsabilidade: de expulsar da Universidade alunos, sem prova cabal de prática de crime; de ter a iniciativa de deixar à margem da sociedade um grupo de estudantes cuja inquietação reflete um desequilíbrio que se verifica em todos os países."
É o parecer que salvou das garras da ditadura 36 acadêmicos, à exceção de Humberto — que foi escolhido pelos deuses da guerra para o martírio.
Humberto, o eleito, não aceitou a segurança do Imip, onde ele e seus colegas estavam a salvo e aprendiam a salvar vidas de outros meninos, praticando a disciplina de Pediatria no Instituto modelo fundado pelo seu mestre e salvador. Humberto, assim como Luciano Siqueira (também pediatra, e presidente do PC do B em Pernambuco), continuaram na militância política que os levou ao cárcere e à tortura. O primeiro foi glorificado na morte; o segundo foi torturado segunda vez pelo agente do DOI-Codi, que mentiu à revista "Veja", caluniando Luciano com a pecha de "dedo-duro". E, pela segunda vez, o parecer do senhor relator defenderá Luciano: agora, no processo que ele move contra aquela revista.
Folheio as páginas deste relatório e nele descubro a receita de um tempo melhor, a fórmula do futuro feliz, dos anos bons, novos e venturosos: é a coragem de enfrentar o momento mais medonho com a dignidade que Deus esparge em seus ungidos. Se nem todos são profetas, eles foram enviados como referência e não cobram direitos autorais: podem ser imitados, caricaturados e plagiados.
O professor Fernando Figueira, por exemplo (e para exemplo), assinou sozinho aquele parecer, como se assinasse mais uma de suas receitas que despacha no Instituto Materno Infantil de Pernambuco, fundado e dirigido por ele, para salvar e ensinar a salvar as mais pequenas vidas. Na época, seu gesto destoou da obediência covarde que fazia curvar o país diante da ditadura. A atitude do professor Fernando Figueira bem pode ter sido o primeiro gesto oficial de desobediência civil contra a tirania. Os pesquisadores da História — que já começa a ser contada, nesse jubileu do Parecer Figueira — hão de provar o que, neste momento, é simples intuição de um cronista do tempo.
Seu gesto de médico tem o poder de curar também o gesto dos homens — do qual a História é a anamnese.
04-01-1994