domingo, 4 de novembro de 2007

Crônicas do livro "Deliciosos"

MINKE

A baleia que veio morrer na praia do Poço sabia de cor a rota do Pólo Sul ao Pólo Norte. É próprio de sua espécie espancar os oceanos de popa a proa. Acostam-se às águas quentes do Nordeste para amar. A baleia poderia ter morrido nos gelos, onde seu cadáver ficaria preservado para sempre, até que as gerações futuras de Andrômeda encontrassem o grande mamífero adormecido no mar de pedra.
Mas a baleia escolheu as águas mornas do Poço para seu último porto. As horas rápidas do verão apodreceram seu corpo manso e nu, adernado ao sol de domingo. Os necrológios não disseram de que a baleia morreu. Falavam apenas de seus restos entre sargaços e olhares curiosos diante da morte enorme.
Ainda há pouco tempo, as baleias morriam ao largo de Costinha, a carne explodida pela granada do arpão. Algumas, de cria, nadavam mais lentas que o bando e eram presas fáceis para o navio voraz. Muitas encontraram a viuvez no mar de Costinha, justamente quando bordejavam o amor.
Sabe-se que as baleias são os animais de maior inteligência no mar, só perdendo para seus rivais da terra, os homens baleeiros. Sabe-se, também, que outrora as baleias habitavam a terra firme e doce. Um dia, preferiram viver no mar. Em que lugar da formidável memória ou do grande coração pulsou a saudade que fez a baleia encontrar a morte no Poço? Ela conhecia o conforto da morte no mar, da morte natural e azul.
Mas, no seu último sábado, a baleia mudou a derrota para a quebrada da morte nas ondas do Poço. No verão de mistérios, a grande noiva do mar guinou do horizonte para o seio da praia. Era verão e sábado, hora e vez das noivas. Úmida, a baleia recostou-se no decote branco, lugar onde o mundo se divide entre mar e terra, e o tempo espuma entre morte e vida.
Grinalda de sargaços cingia o cadáver núbil que o mar em vão reclamava. Não tinha o hálito das noivas. O almíscar da morte possuía a pele de sal. Era calmo seu gesto de morte. Exalava um silêncio sem ricto de dor. Mesmo distante na morte, a baleia quedava-se íntima diante do espanto dos corpos vivos. Pescadores que a viram chegar disseram de seu natural, como se fosse rotina, descendo o degrau das ondas, demandando a terra sem prático de porto.
Em displicente decúbito, o corpo largo esperou a rapina da vida. Levaram-lhe o marfim secreto do cavername. O costado que desafiara as aspas dos gelos foi abordado pelo fio das facas. Decidido à profunda morte, deixava-se sem reação. Quantas vezes cuspira no rosto do vento seu borrifo salobre. Nunca mais a bravata bucaneira.
O grande ser das águas diluiu-se na areia como um sobejo do mar. Era pródigo no seu abandono, à deriva das perguntas. Inútil lhe pedir o porto de arribada. Simplesmente zarpara da vida como um veleiro saturado de mar. Não mais a obsessão do horizonte. Seus olhos fixos em longínquo depois diziam de um navego muito além do mar aberto.
À noite, quando as estrelas vieram carpir seus despojos, a grave alma da baleia alçou a vela grande e singrou as nuvens, levada pelo vento lunar. Deu de bordo ao sul de Antares e rumou para seu pólo absoluto.
Correio da Paraíba, 11-11-1987

O ARRAIS

Não sei como Quitério flutuava. Acho que era porque era da cor do mar. Uma cor pesada e profunda, aquela do buço do horizonte quando o mar, roxo de frio, se arrepia ao bafo de onça das nuvens.
Ele era mais para âncora que para jangada. Uma fateixa enorme, feita da rocha roxa que alicerça e amuralha o Cabo Branco ao rés do mar, lastreando a barreira. Com sua cor e peso de pedra, Quitério também lastreava a jangada arribada às falésias de giz, alvo contraponto no escuro bemol do mar.
Ele era um brasileiro, ou talvez um atlante, de estatura um pouco acima da média da preamar, o mastro curto e grosso do pescoço emergindo da praia larga dos ombros até a carranca, os dois braços de mar sobre o corpo continente; a pele de cação-lixa feita da casca dos arrecifes, os abrolhos da cara no mesmo tom do punhal em que termina o gume violeta do espadarte.
Devia ser por isso que Manoel Quitério, arrais de jangada, flutuava. Os arrecifes também flutuam; as estrelas negras também flutuam, arrecifes do céu.
Quitério e o mar não se temiam. Se cuspiam na cara. Quites um com o outro em revezes recíprocos, tinham um pacto: a linha do horizonte era do mar, a linha do anzol era do homem. Mas ambos, mar e homem, sempre se franqueavam seus extremos. O sol nascia nas ilhargas de um e se recolhia sobre os ombros do outro. Dividiam também o sal e o peixe, e, à noite, cada qual se recolhia com suas sereias.
Não sei se a Capitania tem um três-por-quatro de Quitério, a foto submersa em fichário naufragado. Já faz tempo que ele deixou de pescar e a maresia amanuense pode ter erodido sua ficha, se é que teve. É impossível catalogar todas as criaturas do mar.
Mas Raul Córdula, naquela marinha em que aparece um pescador represando o mar com o dique dos ombros, fixou a juventude e a força de Manoel Quitério. No flagrante, ele dividia ou multiplicava, pois tanto faz, os peixes com o ábaco das mãos. Na marinha de Córdula não há referência ao nome do pescador nem da praia; tanto o homem quanto o mar estão juntos e anônimos, assim como os feixes de peixes.
Raul Córdula capturou bem, na rede da tela, a cor, o volume e a forma do homem distraído, assim de costas para o mar, absorto em multiplicar ou dividir o peixe subtraído à soma das ondas. Ele está com os olhos baixos, mirando a vida na morte do peixe. Não dá para ver o violeta, azul ou verde salobres de seus olhos. Difíceis de pintar e dizer, os olhos estão profundamente mergulhados na morte do peixe, ocupados em dividir e multiplicar a vida; mas é como se nos fitassem.
O rosto e o resto são de Manoel Quitério; o gesto de profeta, o jeito de pescador. A cor é de Córdula; e o tom das escamas do pescador, arpoado pela espátula, é original e úmido como a volta dos que vêm do mar.

A União, 11-01-1989
DESOVA DA PÁSCOA

Há muitas eras aquela tartaruga vem desovar na praia do Bessa. As tartarugas marinhas podem viver muito tempo, e aquela era bem velha. O casco estava encrustado de parasitas, precisando da carena periódica a que se submetem os navios para a limpeza das ostras, cracas e outros agregados e aderentes do mar.
Era uma tartaruga velha, pesada e choca. O esforço para subir a rampa da arrebentação deixou-a exausta e ofegante. Ela ainda reptou em zig-zag, fazendo círculos, indo e vindo até parar exausta à beira da estrada, cerca de cem metros da beira-mar.
As tartarugas sempre voltam ao local de seu nascimento para a desova, como fazem muitos habitantes do mar. Mas aquela parecia perdida, ou desorientada. Talvez não reconhecesse o ambiente de sua origem depois de tantas mudanças nos últimos anos.
Há três décadas, o Bessa era uma praia semi-virgem, quase deserta. Não havia tantas luzes à beira-mar, agredindo a população das águas. Se há três décadas era uma praia silvestre, o Bessa deveria ser bem diferente quando aquela tartaruga nasceu. Não era para menos o espanto do quelônio. Nós outros, humanos, procurávamos a praia do Bessa para o acasalamento passageiro, ainda no começo da segunda metade do século; mas as luzes inibiram esse ritual da natureza suburbana. As mesmas luzes ofuscaram e atordoaram também a tartaruga perdida na beira da estrada.
— O ano passado, ela veio desovar nesse trecho da praia. Telefonaram para o Ibama e os homens vieram buscar os ovos para chocar noutro lugar.
O praieiro já conhecia a tartaruga de outras desovas. Aquela até que tinha sorte, ainda não encontrara o homem lobo do mundo para devorar-lhe a carne e fazer bacia de seu casco. Quem não viu o trucidamento de uma tartaruga pelo bicho homem, ainda não presenciou morte cruel.
Lembro-me da agonia de uma tartaruga no pedaço de praia entre o Elite bar e o Hotel Tambaú, ali perto da antiga Cooperativa de Pesca, mais tarde "Pindá" (Pesca Industrial e Artesanal da Paraíba S/A), já demolida, e onde hoje é o "Bahamas". A tartaruga fora arpoada no pescoço, em alto-mar. Horas depois chegou viva à praia, rebocada pelo bote. Viraram-lhe o casco, o papo para cima. Cortaram-lhe as patas primeiro, para que a faca tivesse chegada ao pescoço e à emenda do papo com o casco.
Não fiquei para ver a evisceração; mas, quando voltei, reencontrei o coração da tartaruga ainda palpitando sobre a areia, batendo na arrebentação.
Aquela da semana passada teve melhor sorte. Ela poderia ter sido atropelada por um carro; sei de um jabuti que morreu esmagado pelo caminhão de seu dono, o pai da prima Salete. Ficamos apreensivos com a desorientação da tartaruga e decidimos devolvê-la ao mar. Se uma tartaruga marinha é um bicho pesado, será mais ainda se estiver ovada. Aquela tartaruga da praia do Bessa estava bastante pesada, mesmo para os quatro homens que a devolveram ao mar, carregando o casco por uma centena de metros na areia fofa. Ela mesma não agüentava andar mais. Quando arriávamos com o seu peso, a tartaruga tentava caminhar, mas resfolegava com a venta voltada para o mar, como um náufrago que tentasse deixar as areias e chegar às ondas.
Na última estação, a uma dezena de passos do mar, repousamos na areia a cansada nave. Um de nós foi ver água na arrebentação e derramou as mãos em concha na venta ofegante da velha tartaruga. Foi um santo remédio. De ladeira a baixo todo santo ajuda, e a tartaruga desceu para a noite de espumas.
Como pesa a consciência ecológica!

A União, 01-05-1992

VERÃO RELATIVO
Para Marcos Wanderley
O peixe também tinha o sentimento do ego. Ele sentiu medo quando me viu. E só quando me viu. Somente porque me viu. Foi quando nossos olhares se encontraram que o peixe sentiu o seu medo. Constatamos, naquele momento, que éramos dois. Até o instante anterior não havia , em mim, a sensação de sujeito. Eu e o fundo do mar éramos apenas um campo, devidamente unificado. De repente, o peixe e eu nos encontramos e nos entreolhamos. O encontro deixou uma contrapartida: a cizânia do desencontro. Tenho certeza de que, até antes, o peixe apenas nadava e sentia seu mar. Mas não sentia a si próprio. Eis que o campo olhou para o peixe. Esse “sentir-se olhado” foi o suficiente para o peixe colocar-se alheio ao campo até então unificado do fundo do mar. Não se sentiu mais como um peixe n’água. O campo o olhava.
O peixe e eu descobrimos que entre nós e o campo havia o olhar. Víamos e éramos espiados. Essa aferição é que nos colocava como dois acontecimentos distintos um do outro, e até do campo. O medo brilhou nos seus olhos, o deslumbramento no meu. O peixe tinha um medo tácito, apriorístico, inamovível. Era inútil tentar dizer-lhe, com meus olhos, que apenas queria vê-lo. Essa era, inclusive, a razão básica do seu medo. Ser visto. Descobrir-se alheio ao campo, mais do que encontrar alguém alheio ao campo. Para o peixe, a alienação mais incômoda era a dele. Descobriu sua esquizofrenia, sua separação do universo.
O canal de comunicação é uma faca de dois gumes. Pode aproximar, pode separar. Quase sempre, separa. Pois traz dois subprodutos residuais: o transmissor e o receptor. E mais outro: o da comunicação em si. O eco da informação é que faz o receptor ter consciência dessa condição e do seu avesso, o transmissor. Pronto: a comunicação separou. Fez surgir o sentimento (anterior à consciência) do ego.
Antes de me ver, o peixe não estava só. Nem “estava”. Era o mar, o campo. Assim como eu — de retorno ao ambiente primitivo. A lembrança desse impasse me fez lembrar o poeta Figueiredo Agra: “De Alfa a Ômega, / pelo roteiro de peixe e macaco.” Mas, além de Figueiredo e aquém do peixe, eu era apenas o mar. Apenas o mar. Um ponto de equilíbrio entre o infinitesimal e o infinito.
Porém, o campo se entreolhou.
Exacerbou-se em dois focos de informação. A unidade do campo tremeu. Dois espelhos foram justapostos. Eu e o peixe nos percebemos e, só assim, nos apercebemos do campo. Até esse ruído, a comunicação era inconsciente. Ninguém estava lembrado de que era alguém. Mas os olhares se encontraram e o universo tomou consciência de si próprio. O campo percebeu que existia no medo do peixe e no meu alumbramento.
De que o peixe teve tanto medo? De descobrir o canal e constatar que podia perder essa descoberta através da morte. No atrito de nosso olhar, o peixe descobriu a possibilidade de ser e não ser. E fugiu, ainda para o campo, mas para longe do momento. A fuga do peixe frustrou-me, pois perdi meu espelho. O campo não me olhava mais. Era, de novo, o campo, apesar da nostalgia do peixe que era a nostalgia de mim mesmo, pois ele me confirmava.
Um dia, olharei o campo com seus lírios, não mais com meus olhos. E serei, novamente, unificado.
Correio da Paraíba, 17-9-1987
A MÁSCARA DE MERGULHO

A flor do medo brotou na fuga do peixe. Seu avesso deve ter brilhado, em outras oportunidades, naqueles olhos pequenos e humanos, escalando a pirâmide da vida, triturando outros medos em fuga.
De repente, uma flor. Conheci que era uma flor de mesmo, não de medo, por sua meia luz própria, iluminando a alcova do mar, e pela ausência de medo no palco, indiferente às máscaras de mergulho da platéia. Mergulhei mais, até o fundo da flor, tomada em minhas mãos depois do aplauso ao seu desempenho vegetal.
Já no camarim, entendi a perfeição do desempenho que antes julgara indiferente às máscaras da platéia. Era flor, indiferente à própria indiferença. Simplesmente sabia o seu papel, e em nada lhe mudou o gesto do meu aplauso — interrompido para levantar-lhe bailarina em minhas mãos. Por um instante, seu não-medo característico de flor aplacou o tremor das mãos e o eco inquieto dos olhos. Atravessou a máscara e contagiou-me com sua paz só aparentemente inerme, mas, em verdade e beleza, apenas absoluta.
Depois do ato da flor voltei ao meu lugar junto às máscaras da platéia, medonhas, de mergulho. Cobriam o avesso do medo sem esconder a fauce abissal do medo faminto. Mergulhavam fundo, até a morte, e arrebatavam, no seu aplauso derradeiro, a vida do palco. Com a intimidade que as máscaras permitem, abordei a máscara mais próxima até o gume desembainhado no olhar arpão. A lagosta, o polvo, o peixe, saíram do fundo do mar para o fundo da fome da raça.
Irmão de máscara, senti-me cúmplice da mão e do arpão no mergulho até a fronteira da morte. Trocamos palavras de máscaras. Palavras dentuças, desembainhadas, os tridentes trincados, mãos em punho. Quantas vezes os arrecifes das palavras arremetem, como vagas, sobre os náufragos mascarados, réus do mar.
Pois as palavras devem imitar o limite da flor, a máscara da flor, despida do medo e do seu avesso. Só as palavras colhidas no fundo da máscara, onde o espírito repousa em estado oceânico, devem ir à tona do silêncio. As outras permaneçam reclusas como conchas.
Para onde foge o peixe, se o mar é um só? Para onde foge a palavra, se o silêncio é claro e transparente? Para onde foge a máscara, se o arpão da vaia a persegue? O peixe fugiu mas deixou a flor. Só a flor não foge, porque tem raízes na beleza.
Era praia e verão em Ponta de Mato. Entre o porto e o horizonte, o farol orientando o arpão, chamando a rosa-dos-ventos na demora da calmaria. O farol mascarado não via a rosa do peixe, a rosa à margem do horizonte, a rosa sem porto e sem volúpia de viagem, âncora leve do momento, a coragem diante do tempo, tão pródiga de espaços que não precisava sair de seu gesto.
A coragem da rosa inibia o arpão. Ele procurava o sangue das máscaras, o vermelho sangue das cores, linfa das águas, tinta da vida, humor da morte. O refluxo da rosa do mar encerrava todas as máscaras, era mais plena quando vazante. O peixe veio beber-lhe o sal mais perene, olhou-me com medo, compreendeu a máscara de mergulho.
A União, 14-7-1991